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O desperdício de médicos em Portugal

Não se entende que não se permita a especialização de centenas de médicos num país onde 800 mil utentes não têm médico de família.

Aconteceu em 2015 pela primeira vez: 114 médicos recém-licenciados foram impedidos de aceder à formação médica especializada. Repetiu-se em 2016, com 158 médicos a não conseguir aceder à especialidade e piorou em 2017, ano em que cerca de 370 médicos não conseguiram vaga para esta formação especializada.

É absurdo! Não se entende que se desperdicem tantos recursos quando o Serviço Nacional de Saúde está tão necessitado de médicos especialistas.

Não se entende que não se permita a especialização de centenas de médicos num país onde 800 mil utentes não têm médico de família e onde a espera para consultas de inúmeras especialidades vai muito para além do admissível.

Lembro, a título de exemplo, que os dados de acesso ao SNS relativos a 2015 mostram que 26% das consultas de especialidade são feitas fora dos tempos máximos de resposta garantidos e que em especialidades como a oftalmologia e a dermatologia essa percentagem aumenta para lá dos 50%. A razão é a falta de profissionais nestas especialidades.

Então por que não formar mais médicos especialistas? Por que razão se atiram centenas de médicos para a precariedade e para a indiferenciação quando se deveria era estar a apostas na formação adicional de especialistas?

Vários serviços das unidades que integram o SNS dizem ter solicitado a abertura de mais vagas para internato médico. No entanto, as vagas que lhes foram atribuídas foram em menor número. Ou seja, os próprios serviços consideravam que tinham capacidade para receber e formar mais médicos, no entanto essas capacidades formativas não foram totalmente aproveitadas.

Torna-se ainda menos compreensível que ano após ano se diga a centenas de médicos que eles não se podem tornar especialistas. Porquê, se eles são mais do que necessários no SNS e muitos hospitais e centros de saúde dizem conseguir formar mais especialistas?

O Bloco de Esquerda já apresentou uma iniciativa legislativa na Assembleia da República para que se faça uma auditoria externa e independente às reais capacidades formativas existentes no Serviço Nacional de Saúde. Esperamos que essa proposta seja aprovada e que com essa proposta se aumentem as vagas de formação e se identifiquem as medidas necessárias para aumentar as idoneidades e as capacidades formativas no SNS.

Com essas medidas poderíamos formar cada vez mais médicos especialistas e, com isso, melhorar a prestação de cuidados de saúde aos utentes.

Esta proposta do Bloco de Esquerda é uma medida muito importante, mas não podemos ficar apenas por aqui. Temos que aferir as reais capacidades formativas do SNS, é verdade, mas temos também que alterar o regime jurídico da formação médica especializada.

O atual regime, da autoria do anterior Governo PSD/CDS, fomentou a precariedade do trabalho médico ao descontinuar a formação e ao incentivar a saída de médicos indiferenciados para o mercado de trabalho; foi esse mesmo regime que acabou, por exemplo, com as vagas preferenciais, instrumentos fundamentais das ARS, que permitiam definir vagas em regiões e serviços especialmente carenciados.

Esse regime tem que ser revisto. Aliás, o Bloco de Esquerda já levou a discussão, em março de 2016, uma série de alterações a esse regime jurídico, onde se pretendia repor a continuidade formativa, garantir o acesso a formação especializada a todos os médicos recém-licenciados, repor a ideia das vagas preferenciais e aumentar as idoneidades e as capacidades formativas.

Essa proposta foi chumbada com os votos contra do PSD e do CDS e com a abstenção do PS. É cada vez mais do que óbvio que a única coisa que não pode ser feita é manter tudo como está. Por isso teremos que insistir em alterações a este regime jurídico e a medidas que garantam a especialidade a todos os recém-licenciados que pretendem prosseguir os seus estudos.

No fim de linha será o SNS e os utentes que sairão a ganhar com estas medidas.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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