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O caroço da maçã

A irresponsabilidade de pensar o Mundo como uma maçã que se parte em dois gomos, tentando preservar a integridade do caroço, não fez muito pela democracia no Mundo.

Em Portugal, após 43 anos de liberdade, a primeira experiência de Governo com sustentabilidade parlamentar em todo o espectro da Esquerda tem dado provas de coesão. Faz o caminho que tantos julgavam impossível, à custa da negociação das linhas fundamentais que possam devolver parte da nossa dignidade. Caroço por caroço, há alguma vida para além do défice e das contas fechadas à cabeça pela Europa tecno-monetária. A memória do país que ontem celebrou o 25 de Abril é também a constatação da capacidade que a Esquerda recentemente soube ter: o caroço da maçã portuguesa pode dividir-se pelo meio, rompendo o bloqueio central do bloco central que, navegando ao sabor dos contextos, sempre se apresentou no poder desde a ditadura.

A falta de pensamento estratégico que resulta do espontâneo alinhamento com o mal menor é parte de leão do que nos trouxe até aqui. E daí que me custe a perceber o coro dos democratas que prestaram provas sentidas de horror perante a não declaração imediata de apoio de Mélenchon ao pré-presidente Emmanuel Macron. É possível não engrossar o caudal da luta contra Marine Le Pen, abjecta candidata da Frente Nacional na segunda volta das eleições francesas? É claro que não. Mas por que razão deveria Mélenchon entregar à bandeja neoliberal quase 20% dos seus votos na noite das eleições, como se eles não tivessem dono, pensamento ou voz própria? Por que razão não haveria Mélenchon de deixar claro que o mal menor é também a razão da existência do pior dos males? Que razão poderia sustentar que a "nova" Esquerda francesa devesse entregar-se de joelhos sem potenciar a influência das razões alternativas da sua expressiva votação? A facilidade não deve ser uma exigência da democracia. Quão ridículo seria que, uma vez mais, a esperança de uma alternativa fosse injectada, à traição, no caroço político francês, à custa de querer cortar a maçã pelo meio sem tocar no dito cujo.

A presença de Le Pen na disputa a dois nas eleições presidenciais em França é, por si só, assustadora. A sua derrota, desta vez, é dada como certa. Mélenchon declarará o seu apoio a Macron, Trump não dará os parabéns a Marine, a Europa não descalçará (ainda) os chinelos para adormecer de vez, o Holocausto - tal como ele foi - ainda constará dos livros da história. Mas está por um fio. Compete à Esquerda pela qual Mélenchon dá o peito saber comportar-se como um Bernie Sanders e não como uma Hillary Clinton. Todos sabemos no que deu não cortar a direito.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 26 de abril de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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