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Não deixar ninguém para trás

Se o país vive um sucesso que se apresenta como de todos, então é o tempo de uma exigência elementar: a de que ele chegue a todos, a de que ninguém fique para trás.

Maria Manuel tem 31 anos e trabalha há 10. É terapeuta da fala e acompanha crianças autistas, com necessidades permanentes de apoio. Mas os seus contratos são sempre temporários. Nas escolas públicas onde trabalha, fazem-lhe contrato entre outubro e agosto. Não recebe nas férias e entra quando o ano já começou. Fez uma licenciatura de 4 anos, mais 2 de mestrado, e ainda somou uma pós-graduação na área. Ao fim de uma década, a expectativa de ver a sua situação regularizada é grande. A dela e a de milhares de técnicos especializados (terapeutas da fala, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, animadores, intérpretes de língua gestual portuguesa...). Certezas absolutas, para já, não existem.

Manuel tem 56 anos e trabalha desde os 10, mas só começou a fazer descontos aos 14. Como outras centenas de trabalhadores das pedreiras de Penafiel, ao fim de mais de 45 anos a trabalhar no duro acusa os efeitos das condições do ofício. Na indústria extrativa da pedra proliferam doenças musculares associadas à vibração dos compressores, doenças auditivas resultantes do ruído das máquinas e doenças respiratórias provocadas pelo pó. Para além da tuberculose, da taxa de acidentes de trabalho muito acima da média e de uma esperança média de vida mais curta neste sector do que na generalidade da população. Com mais 4 mil colegas, Manuel fez uma petição ao Parlamento para ver reconhecido o desgaste rápido da sua profissão. Mas ainda não sabe se a proposta vai ser aprovada.

Maria Gil tem 44 anos e mora com os quatro filhos numa sobreloja, mesmo por cima de um bar, no centro do Porto. Há três anos que procura casa na cidade, mas os 350 euros que tem não lhe permitem arrendar nada do que está disponível. Tem uma doença crónica capaz de provocar dor intensa, e está desempregada há muito tempo. Tanto, que já perdeu o subsídio e só lhe resta o RSI para sobreviver. Já desempenhou muitas tarefas, quer fazer o processo de reconhecimento de competências, continua à procura de emprego. Mas, como outras 450 mil pessoas registadas como desempregadas nos centros de emprego, ainda não lhe foi dada uma oportunidade.

Ana é professora há 15 anos. Mas não faz parte dos cerca de 3 mil docentes que serão abrangidos pelo processo de vinculação lançado pelo Ministério da Educação, depois da negociação com os sindicatos. Já deu aulas de inglês, de português e agora de literacia infantil. Ana também não está abrangida pelo Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública. O seu contrato é com a Câmara de Gaia, e aquele programa não se aplica, para já, às autarquias. Como outros milhares de professores e animadores das AEC (atividades de enriquecimento curricular), os contratos sucessivos começam em setembro e acabam em junho - por isso nunca tem direito a férias pagas. Nas AEC’s ganham pouco mais de 400 euros por mês, 10 meses no ano. Aos 41 anos e com uma filha, já era tempo de ter alguma segurança.

A Maria Manuel e o senhor Manuel, a Ana e a Maria Gil, como todos nós, souberam que este ano “o número de desempregados teve a maior redução em termos homólogos desde que há registo (1989)”; ouviram que o país saiu do “Procedimento do Défice Excessivo” e que isso era razão para celebrar porque fizemos boa figura em Bruxelas e se vai poupar mais de 200 milhões; que o país cresceu, segundo o INE, 2,8% no primeiro trimestre, “um número histórico”; sentiram a ligeira subida dos apoios sociais e um ambiente que é de recuperação de direitos e já não de insulto permanente a quem tem menos e a quem vive do trabalho. Sabem que se está a discutir o direito à reforma antecipada para quem tem longas carreiras contributivas e medidas de combate à precariedade. São boas notícias? Certamente que sim. O país está melhor agora do que há dois anos e qualquer uma destas quatro pessoas (que conheço bem) olha para a atual maioria com simpatia e com expectativa. Mas se “o país”, dito assim em abstrato, está melhor, há ainda a sua vida concreta - e essa continua por resolver.

Não faz sentido esperar mais. Se há folga, este é o momento de ir mais longe. Na regularização de precários e no direito à reforma para quem tem carreiras longas, na vinculação dos professores e dos técnicos precários ou na garantia de proteção social, no direito à habitação ou no investimento público capaz de criar mais emprego, não esqueçamos quem ainda não teve a sua parte. Essa tem de ser a prioridade. Se o país vive um sucesso que se apresenta como de todos, então é o tempo de uma exigência elementar: a de que ele chegue a todos, a de que ninguém fique para trás.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 2 de junho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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