Medina e Cristas ainda vão casar por razões fiscais

porRui Costa

12 de setembro 2017 - 23:58
PARTILHAR

No fim, são convidados para comer na boda permanente os titulares de maiores rendimentos e de rendimentos prediais, pagando a boda sem comer os que vivem de rendimentos do trabalho.

Assunção Cristas, no encerramento da Convenção Autárquica do CDS, a propósito da alteração dos escalões do IRS para os rendimentos mais baixos desafiou o Governo nos seguintes termos: se há margem para mexer nos impostos, então olhe-se para toda a carga fiscal, se há margem para baixar o IRS então que se baixe em todos os escalões”.

Este desafio de Assunção Cristas não é de espantar: afinal, o conceito de progressividade do imposto sobre os rendimentos é algo que lhe é pouco caro, apesar de inscrito na Constituição da República Portuguesa (artigo 104.º, n.º 1) e de ser um velho princípio fiscal, aplicado em Portugal desde o Código da Contribuição Predial, de 1913, da lavra do Governo de Afonso Costa.

O Princípio da Progressividade consiste grosso modo, numa tributação a uma taxa variável que é diferenciada, aumentando em função da matéria tributável, isto é, faz com que quem mais rendimentos ou património tem pague os seus impostos a uma taxa mais elevada que os menos afortunados, por oposição a uma taxa meramente proporcional e igual a todos (como é o caso do IVA, que por isso se diz um imposto cego) ou a uma tributação igualitária por cabeça, de valor fixo. É fácil perceber, para quem defenda a redistribuição da riqueza e a justiça social das diferenças de regime.

O Princípio da Progressividade dos impostos foi uma ideia revolucionária, sendo até defendido e proposto por Proudhon na Assembleia Nacional Francesa em 1848, sendo então chumbado e consignado na ordem do dia dos anais do parlamento que “o imposto progressivo era imoral e subversivo da ordem divina e humana.”. Oh, cara Assunção, que bem lhe deve soar esta argumentação…

Hoje, o Princípio da Progressividade dos impostos encontra-se amplamente acolhido na Europa e é considerado um meio de redistribuição da riqueza insubstituível, assegurando, ao menos, um maior equilíbrio social no financiamento das actividades do Estado.

Perante uma paulatina reposição da justiça fiscal, visando eliminar as injustiças introduzidas no Governo a que Assunção Cristas (ainda) se orgulha de ter pertencido, tem havido o cuidado de concentrar o esforço na reposição de escalões de IRS visando assegurar a reposição da progressividade do imposto entretanto diminuída.

Mas Assunção Cristas não quer a progressividade fiscal, como aliás bem demonstrou no Governo a que pertenceu, não apenas eliminando escalões de rendimentos que visavam uma maior progressividade e justiça fiscal, como também subtraindo os rendimentos prediais à progressividade, fazendo com que quem viva de rendas pague 28% ou menos de IRS e quem viva do trabalho possa pagar bem mais do que isso, iniquidade a que em tempo me referi. Bem se percebe da diferente consideração de Assunção Cristas pelos rendimentos do trabalho em favor dos rendimentos de capitais.

Fernando Medina, embora não parecendo, não anda longe das iniquidades de Assunção Cristas em matéria fiscal. Desde logo, porque se orgulha de reduzir a tributação em IRS de forma cega, através da fixação da menor participação do Município na receita do IRS na Área Metropolitana de Lisboa. Esta medida, de aparente popularidade, não é de grande justiça. É que a participação variável do Município no IRS é aferida em função da colecta, isto é do que cada contribuinte efectivamente deve pagar. Ora, ao advogar a sua devolução, ainda que parcial, Fernando Medina contribui para inflectir o Princípio da Progressividade, devolvendo de igual forma percentual a todos os Munícipes. Assim, aqueles que têm maiores rendimentos beneficiam em muito mais, em termos absolutos e relativos, do que aqueles que têm menores rendimentos.

Mas Fernando Medina não se fica por aqui. Relativamente aos rendimentos prediais, Fernando Medina procura resolver o problema de habitação em Lisboa, advogando que os rendimentos provenientes de arrendamentos de longa duração beneficiem de uma “redução da tributação em sede de IRS para 10%, nos contratos de arrendamento habitacional de duração superior a 10 anos privilegiando a estabilidade habitacional em prejuízo da atual precariedade nos contratos habitacionais, bem como a flexibilização das regras de redução do IMI para o mesmo fim”.

Ora, semelhante redução, nos termos em que é proposta, desagrava ainda mais (de pelo menos 28% para 10% ou menos) a carga fiscal para os rendimentos prediais, distorcendo a progressividade do IRS. E quando se diz “pelo menos”, tal se deve a que os titulares de rendimentos prediais podem deduzir ao ser IRS o IMI, o Adicional ao IMI, as despesas de condomínio e com obras dos imóveis arrendados ((artigo 41.º, n.º 1 do Código do IRS).

Fernando Medina, seguramente que com declarações e juras de amor eterno de Assunção Cristas à medida proposta, cria um novo paraíso fiscal em Portugal: o arrendamento urbano.

Percebe-se, e apoia-se, que haja uma política fiscal que promova a estabilidade dos vínculos arrendatícios. Mas as condições podem e devem ser exigentes: os imóveis devem ser arrendados num intervalo de preços, não beneficiando a especulação do valor locativo dos imóveis e a sua oferta deve obedecer a critérios de transparência e não discriminação de acesso, designadamente através de uma bolsa municipal de habitação, onde os mesmos sejam objecto de oferta e atribuição em regime concorrencial. No entanto, também se sublinha que se procura resolver, por via fiscal, os efeitos perniciosos da menor protecção aos inquilinos das leis do arrendamento, tão querida a Assunção Cristas e que o PS de Medina não teve coragem de resolver de forma adequada.

Com a solução cega proposta por Medina, imagine-se a perda de receita fiscal (que é de mais de 60%) que poderia ser, afinal, canalizada para o desenvolvimento de políticas públicas de habitação, reabilitando o parque habitacional e garantindo oferta pública de habitação.

Quanto aos benefícios de IMI já concedidos pelo Município de Lisboa para prédios arrendados para habitação, Medina não percebeu mesmo nada: insiste em prescindir de receita em favor da administração central. É que o valor pago de IMI pelos senhorios é dedutível em sede de IRS (artigo 41.º, n.º 1 do Código do IRS), pelo que deixa de receber tais valores o Município para que o Estado receba mais em IRS. Mas esta posição de Medina tem uma explicação quase freudiana: é que como Assunção Cristas, Medina quer uma cidade “amiga” da baixa de impostos.

É por tudo isto que se anuncia, por motivos fiscais, um casamento entre Fernando Medina e Assunção Cristas, tais são as afinidades. No fim, são convidados para comer na boda permanente os titulares de maiores rendimentos e de rendimentos prediais, pagando a boda sem comer os que vivem de rendimentos do trabalho.

Rui Costa
Sobre o/a autor(a)

Rui Costa

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
Termos relacionados: