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Mas há alguma surpresa no caso Lula?

O Brasil virou uma página e entrou naquela terra misteriosa que os mapeadores dos navegantes portugueses marcavam com o hic sunt leones, a partir daqui é a selva.

Houve emoção e suspense, grandes manifestações, transmissão em directo na televisão, Michel Temer até viajou para fora do país para fingir que não era nada com ele, e concluiu-se o que se esperava, os três desembargadores de Porto Alegre confirmaram a condenação do ex-presidente Lula e, obedecendo a desígnios miraculosos, concordaram exactamente no mesmo aumento de pena para uns bíblicos doze anos e um mês. O Brasil virou uma página e entrou naquela terra misteriosa que os mapeadores dos navegantes portugueses marcavam com o hic sunt leones, a partir daqui é a selva. As elites brasileiras, escravocratas e gananciosas, não admitem a intromissão de movimentos ou protagonistas populares ou de qualquer entrave à extorsão do pecúlio público. Como aqui se chegou, no entanto, é cristalino e não sugere qualquer surpresa.

O objectivo da condenação é evidente. O julgamento foi precipitado através de procedimentos expeditos porque era necessário impedir a inscrição da candidatura de Lula no registo eleitoral, tanto mais que, apesar de toda a pressão, ele tem subido nas sondagens e até aparece como vencedor da segunda volta em todos os cenários actualmente identificados. A exibida festa dos candidatos de direita e de extrema-direita, que bem podiam ter-se mantido sobriamente distantes, ajudou a mostrar o alvo e o serviço. Nenhuma surpresa.

A protecção do fulgor político do judiciário também não suscita nenhuma surpresa. Manuel Carvalho escrevia aqui no PÚBLICO que nenhum tribunal europeu aceitaria as provas que condenaram Lula e tem provavelmente razão. Uma casa que o putativo comprador e o putativo vendedor afirmam que não transaccionaram; uma suspeita de corrupção para favorecer vantagens não identificadas, sem qualquer evidência ou prova; é tudo demasiado manipulável. Acresce que o Tribunal da Relação terá sentido a obrigação de confirmar a sentença do juiz Moro, um homem do PSDB que foi simultaneamente o instrutor do processo, o acusador e o julgador – um conceito de justiça que sobrevive ao arrepio das tradições do direito pós-Idade Média. Os juízes tornaram-se assim o braço executivo de um conflito político, mas isso não é inédito. Para mais, precisavam de defender a “delação premiada”, o negócio que troca absolvições por denúncias, e pedir no Brasil que todas as acusações de corrupção sejam julgadas da mesma forma é ingenuidade. Nenhum surpresa, mais uma vez.

As empresas mais poderosas da comunicação social promoveram o golpe, incensaram os golpistas, multiplicaram a violência acusatória, convocaram apoios. Mas isso não é surpresa, a Rede Globo tinha sido no Brasil uma das vozes essenciais da preparação do golpe militar de 1964. Já aqui escrevi que, em momentos de tensão, o fim do jornalismo como comunicador de factos, esgotando-se estes no cabo, no twitter e nos onlines, e a transformação do jornalismo em comentário partidário, alinha a imprensa nas lutas políticas e até as agrava, porque nessa guerra não se limpam armas, só conta o efeito imediato, o que acelera os golpes e contra-golpes. O que será novidade é a capilarização da caça às bruxas nas redes sociais, transformadas em paraíso de uma comunicação delinquente.

Nenhuma surpresa ainda na vulnerabilidade do PT, ferido pela sua própria política, desde as alianças, como a que deu a vice-presidência a Temer e o congresso a Cunha, até à corrupção, como no caso Mensalão. O PT perdeu-se a si próprio nessas cedências mas, quando a presidente Dilma foi demitida na base de um processo escabroso sem qualquer acusação, houve uma resposta popular que se apercebeu do risco e que se colocou na trincheira que conhecia melhor.

A partir daqui está a terra dos leões, é a selva desconhecida.

Artigo publicado no “Público” em 27 de janeiro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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