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Inverno, o tempo dos vivos

O anterior Governo liberalizou o eucaliptal e o atual não mudou grande coisa. Faltou coragem para enfrentar interesses, lucros e lóbis.

No último inverno fiz de uma empreitada os 738,5 quilómetros de asfalto que ligam Chaves a Faro pela maior estrada do país. A Nacional 2 percorre Portugal pelo interior, desce do Alto Douro, atravessa-o no Peso da Régua, segue por Lamego, Viseu, Tondela, salta o rio em Oliveira do Mondego, serpenteia as serras entre Góis e Pedrógão Grande, onde cruza o Zêzere, depois Seia, Tejo e além, até que a Serra do Caldeirão espreita as planícies, a antecipar o mar.

No inverno passado, apreciei a beleza da EN2. Uma ou outra vez dei por mim a pensar “olha como isto ardeu no verão”. Não vi máquinas a trabalhar na floresta nem à beira da estrada, mas vi eucalipto com fartura. Verdadeiras molduras naturais que no inverno ensombram a estrada e no verão a podem galgar como num inferno. Bem sei que não foi na N2 que se perderam tantas vidas no sábado, mas poderia ter sido. Ou em qualquer outro troço de qualquer outra estrada do interior esquecido.

Correu tudo mal. Quando 64 pessoas morrem e centenas de vidas ficam destruídas, não há outro balanço. Trovoadas secas, temperaturas brutais, ventos indomáveis, correu tudo mal. Mas estaremos condenados a apenas lamentar, impotentes, a conjugação trágica de forças que não controlamos? Não, nem estávamos.

Uso o plural coletivo porque o tempo é de solidariedade. Uma tragédia desta dimensão tem o poder de nos questionar enquanto sociedade, de nos fazer sentir uma surda ponta de culpa, mesmo que sem responsabilidade. A perda é demasiado grande para que a possamos arrumar na lista das coisas que “acontecem”, indigna-nos, confronta-nos. É isso o luto.

Há um tempo para enterrar os mortos e outro para cuidar dos vivos. Infelizmente deixaram passar esse tempo, o dos vivos, sem fazer prevenção. Sobre isso está quase tudo dito: as promessas do verão arrefecem a cada inverno. “É altura de actuar porque daqui a um tempo já ninguém se lembra”, disse Marcelo, em Agosto de 2016. Não é preciso ser vidente, basta conhecer o passado.

Nunca mais. Perdemos o luxo dessa irresponsabilidade. Durante anos ignoraram-se as vozes que se levantaram contra a expansão do eucalipto e a falta de ordenamento das florestas. Apesar dos avisos, o anterior Governo liberalizou o eucaliptal e o atual não mudou grande coisa. Faltou coragem para enfrentar interesses, lucros e lóbis, dirão que faltou dinheiro, porque essa é sempre a melhor desculpa.

Tudo isso é irrelevante agora. Agora é verão, é tempo de apagar incêndios, enterrar os mortos e tratar dos feridos. Mas vai voltar o inverno, o tempo de cuidar dos vivos. E então não bastará fazer qualquer coisa. Se não mudar tudo, esta desgraça terá sido apenas isso, uma tragédia em vão.

Artigo publicado no jornal “I”, a 21 de junho de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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