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Farsa, mentira e medo!

Qualquer realidade, por mais cruel e desumana que seja, pode adquirir uma aceitação de normalidade para a maioria das vítimas. Por muito estranho que pareça aos que teimam em denunciá-la.

Quando tudo parece adverso, cada um de nós tende a ajustar-se ao menor sofrimento possível. À medida que as circunstâncias vão piorando, o “salve-se quem puder” reforça-se com mil e uma razões sensatas. À nossa volta, os que nos querem bem, relembram-nos vezes sem conta as regras do jogo. Cada um por si. É neste estado deplorável que nos querem os grandes interesses que nos governam.

Entre o que calamos e o que dizemos. Entre o que nos acobardamos e o que enfrentamos. Entre o que só a nós interessa e o que isso custa a outros. Entre o que não fazemos e o que deixamos que façam. Entre um sensato egoísmo e uma exigente responsabilidade social. Entre uma vidinha medíocre e uma vida cidadã plena e digna, agigantam-se a farsa, a mentira e o medo.

A própria indignação que persiste e até parece alastrar episodicamente, tende a produzir um padrão de ruído permanente e também normalizado. Acaba por aliviar a pressão. Tem um efeito catártico. Ao invés de promover a revolta, alivia consciências e mantém o fundamental.

Há também oportunismos, traições, chantagens, palavras que se compram e se vendem, muros convenientes, pequenas e grandes vaidades e um sem número de dificuldades acrescidas vindas de todos os lados.

Tudo quanto foi dito atrás, retrata os dias de hoje. Mas poderia perfeitamente retratar os de há 40 anos. O tempo da ditadura.

Não! Não estou a dizer que a realidade é exatamente a mesma. Claro que não é! E isso é o mais difícil de aceitar. A democracia também dominada pela farsa, pela mentira e pelo medo.

Em Março, sete dezenas de cidadãos profundamente conhecedores da realidade financeira, económica e social do país, com percursos e perspetivas completamente diferentes entre si nos mais variados temas, pessoas da direita conservadora à esquerda mais assumida, de Adriano Moreira a Francisco Louçã, tiveram a coragem de manifestar ao país a ideia comum sobre a necessidade de se encontrar solução para a dívida no quadro de uma reestruturação que a torne sustentável de facto. As reações foram absolutamente esclarecedoras. Os defensores da farsa cerraram fileiras, douraram a mentira e distribuíram o medo como se de sensatez se tratasse.

Sobre o estado a que chegamos, há neste episódio recente muitas conclusões para retirar se nos desprendermos da noção de normalidade absurda a que nos querem habituados. A síntese será a de que é mais que tempo de redescobrirmos um Abril libertador.

Precisamos de começar por recuperar a força inicial das palavras. Para falarmos uns com os outros e sermos ouvidos. Precisamos de encontrar objetivos comuns. Apesar das nossas diferenças. Como no tempo da luta contra a ditadura. Precisamos de distinguir melhor o fundamental do acessório. Precisamos de valorizar de forma inequívoca a dignidade humana e a justiça social.

Precisamos de coragem e de ação.

Texto de opinião publicado na revista ValeMais de Abril

Sobre o/a autor(a)

Designer. Membro da concelhia do Bloco de Esquerda de Caminha.
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