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As duas faces da austeridade que nos magoam

O pequeno aumento das pensões aprovado foi positivo mas a questão mais importante de todas é que não houve cortes. No final do ano teremos de revisitar estas alterações, avaliá-las e, porque não?, equacionar outro passo em frente.

Para falarmos de austeridade temos de recuar ao annus horribilis de 2013. A memória não pode ser curta e 2013 marca o auge da ousadia, da desfaçatez, do abuso de quem quer, pode e manda. Uma direita desbragada que entrou sociedade fora a semear a dor, a injustiça, a tensão social. Pudesse ser esquecido, não se conseguiria. Tratou-se de uma corrida louca, insana para o cumprimento do défice. Agarra que foge! Servil ao limite, o governo de direita curvou-se perante Bruxelas. Uns e outros, não serão esquecidos. Todo o programa defendido pela direita, a sua ambição e desejo, foram chumbados em outubro de 2015. O presente governo e os partidos de esquerda que o apoiam seguem linhas programáticas opostas às da direita executadas, porém, sempre no limite do cumprimento das diretivas europeias. Esta opção não proporciona todas as respostas que poderíamos desejar mas existe um acordo que sustentamos e que, naturalmente, honramos. Espaldados pelo acordo, a nova governação começou, já deu provas para dentro da maioria parlamentar mas também para a população em geral. Entre as várias lições, fica aquela que indica que é preciso prosseguir aprofundando os termos do acordo. É para isso que cá estamos.

O ano de 2016, do ponto de vista orçamental, cumpriu. O défice (tudo indica) será bem menor do que alguma vez se pensou. A conjuntura ajudou e as explicações técnicas são variadas. A realidade que tal permitiu será seguramente analisada pelos economistas. O resto da população pode ter uma perspetiva diferente. Tão mais diferente quanto mais carente e ambiciosa.

No verão de 2016, quando a discussão do orçamento para 2017 acelerou, em cima da mesa foram colocadas as pensões. Todo o tipo de pensões o que só por si configura uma panóplia muito complexa. Das sucessivas avaliações, das ponderações feitas pelo governo e também pelos partidos à esquerda, concluiu-se que não haveria folga financeira para atender com a dignidade merecida todas as situações de pobreza, ou próximas, conhecidas. Falta de dinheiro foi o argumento central; melhorava-se um pouco, privilegiavam-se os grupos mais afetados, excluía-se um grupo que havia gozado de alguma melhoria durante o governo da direita (decisão que ampararia muita demagogia por parte dessa mesma direita) e prosseguia-se para a proposta orçamental. Ignoro se esta opção foi bem compreendida por todos os pensionistas fossem os que seriam beneficiados com um pequeno aumento fossem os que não sentiriam nenhuma melhoria por estarem acima da fasquia determinada. Com certeza que o pequeno aumento aprovado foi positivo mas a questão mais importante de todas é que não houve cortes. A palavra de ordem vencedora foi “mais cortes, não”. Estava dado o primeiro passo contra o empobrecimento sistemático, planeado e frio. Esta nova abordagem está agora, março de 2017, em marcha. No final do ano teremos de revisitar estas alterações, avaliá-las e, porque não?, equacionar outro passo em frente.

Exatamente, mais um passo. Primeiro porque estamos longe de ter reposto a justiça e de ter respondido a todos os pensionistas; segundo, e na sequência do primeiro, é que o défice abaixo do previsto nos indica que, afinal, o orçamento de 2017 podia ter sido um pouco mais generoso. Admitamos que o governo quer manter-se com “cuidados e caldos de galinha”; admitamos que do verão até ao final do ano de 2016 a conjuntura se alterou para além do previsível e que, portanto, as metas atingidas constituem em parte uma surpresa. Muito bem, mas não se pode continuar a vender aos pensionistas esta estratégia de cautelas que invariavelmente os atinge como alvo mais fraco. A folga deverá ser utilizada em benefício de todos, em equipamentos sociais, de saúde, escolas, transportes. Claro, não podemos concordar mais. Mas, acrescentamos, também em prol dos pensionistas, daqueles que continuam com pensões muito baixas; daqueles que ainda não viram valores repostos; de todos os que desde 2009 têm as pensões congeladas.

Não consigo avaliar se ter cumprido o défice é bom, ou é mau porque o argumento para justificar o cumprimento do défice mata qualquer imaginação, desejo, sonho. Com a direita, austeridade significou terror; com este governo, foram tantas as cautelas, os cuidados, o bom senso que os números acabaram por ensombrar as pessoas. O cumprimento do défice não pode matar as nossas expectativas. Contas, precisam-se, com Excel ou sem ele, para reavaliar as pensões e como melhorá-las. Os ganhos de 2016 poderão permitir equacionar melhoramentos que não sejam simbólicos mas que façam jus ao nome mas também alargar o universo dos pensionistas que deverão ser abrangidos. Sim, precisamos de trabalhar propostas concretas para 2018.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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