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Discurso dos “brandos costumes” esconde a existência de “brancos costumes”

Ao contrário do que acontece em tantos e tantos países europeus, o racismo não está tipificado como crime autónomo em Portugal.

Os sinais de alerta estão aí. Não podem ser ignorados. O relatório Anual da Amnistia Internacional (2014), relativo ao estado dos direitos humanos no nosso país, insiste na denúncia do excesso de força pela polícia, na discriminação de comunidades como a cigana, desde as demolições prepotentes na Vidigueira à turma especial de crianças ciganas.

Em 2012, um relatório da ONU concluía, depois de visita de peritos ao país em 2011, que as pessoas de origem africana que vivem em Portugal estão sub-representadas nos processos de tomada de decisão, não têm igualdade de acesso à educação, aos serviços públicos, ao emprego, são discriminadas no sistema de justiça, vítimas de discriminação racial e de violência pela polícia, e que nem os dados sobre as diferentes minorias étnico-culturais são insuficientes para as conhecer. Mas no país dos “brandos costumes”, onde o racismo é tantas vezes subtil, às vezes as coisas explodem e deixam de ser assim tão subtis.

Nos últimos tempos os exemplos têm-se multiplicado, desde o Casal da Boba na Amadora, à Quinta do Mocho em Sacavém, passando por Setúbal, ou pela crueza da intervenção da policial nas demolições do bairro Santa Filomena.

A 5 de fevereiro, na Cova da Moura, cinco jovens denunciaram a violência e xenofobia das forças de segurança. A Associação Moinho da Juventude, da Cova da Moura, adepta da comunicação não violenta, tem um levantamento exaustivo de todos os esforços que tem feito desde 2012, para evitar que as coisas sejam assim. Fizeram reuniões com as forças de segurança e com os comerciantes, envolveram-se em projetos com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, apoiam os seus jovens, os textos que produzem reconhecem que a polícia tem de fazer o seu trabalho e falam de policiamento de proximidade, mas os relatos de abuso de força e de racismo multiplicaram-se e têm de conviver diariamente com o Corpo de Intervenção Rápida da PSP.

As e os jovens que se sentaram connosco à mesa na audição pública que promovemos, no passado dia 24, falaram dos esforços e da ausência dos resultados, deram voz às suas vítimas. Flávio Almada foi um dos jovens agredidos na esquadra de Alfragide. Deu nota dessa “suspensão do estado de direito” que se vive nos bairros, da banalidade do ódio racista: “nós os pretos, temos de morrer”. Outras vozes se juntaram, casos de mulheres com crianças e idosos agredidos ou ameaçados, da banalidade do medo da polícia, desse estigma que é ainda hoje ser um português não branco, mesmo se não se cresceu num bairro pobre, dos despejos sem alternativa. Se moram em “bairros complicados” são todos/as potenciais suspeitos.

Sabemos bem que a intervenção policial é apenas uma parte do problema. Durante décadas, governos e autarquias, na ausência de políticas sociais de habitação ou na presença de políticas segregadoras, enfiaram estas comunidades nas bordas dos concelhos das grandes metrópoles, e às vezes até pintaram os bairros de cores diferentes para distinguir africanos de ciganos. Sempre à espera que nada acontecesse. O que correu bem dependeu quase sempre do voluntarismo de uns e de outros, como o dos jovens do Moinho da Juventude, que ainda não desistiram. Mas a violência e o racismo podem ser ensurdecedores e quando Portugal foi eleito membro do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU para o biénio 2015/2017, com uma votação recorde, estes exemplos só nos podem envergonhar.

O Bloco de Esquerda apresentará um conjunto de iniciativas legislativas para responder de forma mais decidida ao racismo no plano penal. Ao contrário do que acontece em tantos e tantos países europeus, um debate que foi recentemente reavivado com o incidente no metro de Paris com adeptos de futebol de um clube britânico, o racismo não está tipificado como crime autónomo em Portugal. Importa ainda avaliar o comportamento das forças de segurança e reforçar, em conjugação com as próprias comunidades, o policiamento de proximidade.

Tantas e tantas vezes o discurso dos “brandos costumes” esconde, por detrás da sua candura, a existência de “brancos costumes”. Compete aos partidos, governo e autoridades no terreno responder a uma sensação que existe em vários bairros da periferia das grandes cidades. Pela nossa parte, iniciamos o debate.

Declaração política na Assembleia da República em 5 de março de 2015

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professora.
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