Está aqui

A Direita, o Natal e o rancor

Os governos da direita são proverbialmente sítios de compadrio e traição. De infinitas solidariedades e de tiros certeiros pelas costas, que é sempre uma forma muito digna de acabar uma amizade.

Os compadres e confrades beijam-se e abraçam-se muito, até a roda desandar. Quando toca a finados, pisgam-se com a maior naturalidade e traem-se com grande profissionalismo. Nem sempre, é claro. Lembremo-nos de Dias Loureiro, incensado ainda há pouco tempo por Passos Coelho e retirado a saca-rolhas do Conselho de Estado. Entre a ninhada cavaquista há casos de amor incondicional. Mas, normalmente, quando acaba a potência do mando, acaba também a coreografia da afeição que todos os dias era celebrada.

Parece que a PAF morreu. Mas esta direita, que agora está na oposição e queria ser governo, está unida, porque está com o sentido no poder. Como um cão que não sai do sítio onde havia comida porque ainda lhe sente o cheiro. Está alerta. A experiência recente de governo por quatro anos fornece-lhe alimento de esperança. A eventualidade de eleger de novo um qualquer Presidente, nem que seja essa personagem made in TVI, que até há pouco desconsiderava e agora afaga cheia de ternura, fá-la entrar num pré deleite, numa emocionada litania elogiosa.

Quando chegou a S. Bento, a aliança PSD/PP decretou que aquela era a sua casa. Dividiu tudo em condomínio fechado, pôs ferrolhos nas portas, e depois iniciou a cruzada dos cortes. Houve outras cruzadas. Sabemos que houve.

Foi-se afeiçoando aos lugares, que bem se está por aqui, o governo transformado em toca, uma toca medonha, um contentor de interesses. Os mais criançolas mostraram-se aguerridos, estourando de um ódio apaixonado, um ódio técnico e económico. Para eles o abate de velhos e doentes seria coisa a considerar. Ficam caros.

Agora, o mais cabisbaixo de entre aquela gente é o seu presidente. Esse sabe que, quer o vento sopre de um lado, quer sopre de outro, tem os dias contados. Contadíssimos. Em contagem decrescente, tal como decrescente é o respeito que inspira mesmo entre aqueles que juraram que havia ali saber e verticalidade.

Estão à espera. Uma espera ansiosa. Deixaram tudo artilhado por toda a parte. Nos papéis orçamentais, nos bancos doentes devidamente ataviados de sarna e embuste. Para eles o parlamento é um circo de habilidades várias. Às vezes avançam em esquadrão e pegam nas deixas uns dos outros, autoelogiando-se, que bem que nós falamos, que capacidades verbais temos. De quando em quando, actuam por conta e risco lançando uivos como se estivessem sozinhos num monte.

Esta direita folclórica se pudesse partia o maxilar à esquerda por entre gargalhadas. Sonha deitar-lhe a fateixa e apertar-lhe o papo. Deleitar-se-ia com o tormento do estrebucho. Gente boa, esta gente, tão religiosa, ele é missa do galo, ele é Menino Jesus nas palhinhas, a todos um bom Natal, noite feliz, noite de amor.

Nesta quadra santa, a pretexto da concórdia e da Hosana nas alturas, vamos assistir a mais um discurso cheio de rancor, vindo de Belém. Entre presépios e música afável será destilada nas entrelinhas mais uma quantidade apreciável de veneno.

Provavelmente, para o Ano Novo, haverá a última discursata com mais ódio e ressentimento. Santa quadra. A criatura dirá, vem aí o apocalipse e é muito bem feito. O défice vai descambar, porque a esquerda quer gastar à tripa forra, onde já se viu aumentar o salário mínimo com este despudor, eu avisei, não se esqueçam do que eu disse no dia tantos do ano tal. Paz no mundo aos homens de boa vontade.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
Comentários (1)