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A crise de 2011 e o efeito dominó da dívida

Ao agitar o espectro de uma crise, Cavaco Silva ignora sobranceiramente que já vivemos uma crise e muito grave.

A economia portuguesa ficou marcada, esta semana, por dois acontecimentos importantes. O primeiro foi a emissão de dívida pública de ontem. O segundo foram as previsões, pelo Banco de Portugal, de que a economia nacional perderá mais de um por cento do produto e estará numa profunda recessão no próximo ano.

Ora, só aparentemente estes indicadores são divergentes. A previsão do Banco de Portugal não deixa margem para dúvidas. Como consequência natural da política recessiva seguida pelo Governo, com o prestimoso apoio do PSD, o país vai entrar novamente em recessão já no próximo ano. Nem podia ser de outra forma, depois do brutal aumento de impostos, diminuição dos salários, crescente dificuldade no acesso ao crédito e aumento do desemprego. Mesmo os portugueses com emprego vão, com a subida de impostos e diminuição salarial, ver os seus rendimentos diminuir quase três por cento.

Resultado: o consumo privado vai ficar no nível mais baixo de sempre. E o pior efeito da recessão e que, só este ano, são mais 50 mil pessoas que vão ficar sem trabalho. Portugal está a um passo dos 700 mil desempregados.

Perante este cenário económico e social que se avizinha para Portugal, é extremamente preocupante que a nossa economia continue a ser alvo de um forte ataque especulativo. Um sintoma disso é que, face aos condicionalismos de uma economia à beira da recessão e de um mercado internacional incendiado pelas notícias cirurgicamente lançadas por Merkel e Sarkozy, os insaciáveis prosélitos do FMI como rolo compressor da democracia económica e social em Portugal andem cabisbaixos.

O FMI é o expediente da direita portuguesa para poder aplicar o seu programa radical e extremista, disfarçando-se atrás desta sigla: diminuição do valor do salário à custa da recessão, transferência para os privados dos mais importantes serviços públicos.

Cavaco Silva, que passou as últimas semanas a advogar o silêncio cúmplice dos responsáveis políticos diante dos movimentos dos especuladores internacionais que visam a destruição económica de Portugal e de todos os países da periferia da Europa, decidiu quebrar, ele próprio, esse verniz de silêncio, mostrando ontem com clareza o seu irreprimível anseio pela vinda dos disciplinadores implacáveis.   

Ao agitar o espectro de uma grave crise política quando toda a imprensa internacional estava a seguir a economia nacional e a sua capacidade de se financiar nos mercados, o candidato presidencial apoiado pelo PSD e pelo CDS não quis menos do que incendiar a pradaria. Para Cavaco Silva a mensagem é clara: devemos estar todos caladinhos sobre os juros da dívida, mas só quando essas declarações prejudiquem a especulação que se abate sobre a economia nacional. 

Para quem insistentemente se reclama de uma posição acima dos partidos, a perfeita sintonia desta estratégia com o discurso aguerrido da claque do FMI não será, certamente, mero acaso do destino. Quando a economia real a contraria, a claque do FMI, entre gritos de guerra dos economistas de serviço e palavras de ordem matraqueadas pelos fazedores de opinião, recorre à política da terra queimada, pretendendo abrir caminho à intervenção externa em Portugal que põe em causa a possibilidade dos portugueses decidirem sobre o seu destino.

Ao agitar o espectro de uma crise, Cavaco Silva ignora sobranceiramente que já vivemos uma crise e muito grave: um quinto da população é pobre e as pensões estão congeladas; um trabalhador em cada dois está desempregado ou é precário. A crise de 2011 agrava a destruição da economia e da vida das pessoas – e essa crise resulta da aplicação corrente de medidas FMI, nomeadamente no Orçamento que agora está em vigor com a decisão do Governo do PS e os votos do PSD.

Com amigos assim, a economia portuguesa não precisa de inimigos. O FMI e o Fundo de Estabilização Europeu não nos vão salvar. A sua intervenção usurária só tem dois objectivos: vergar o doente e isolá-lo, para salvar os países dominantes e os seus interesses financeiros. Com um senão suplementar: os resultados da Grécia e da Irlanda mostram à saciedade que o argumento da contenção do contágio é uma fantasia. Era preciso intervir na Grécia para salvar a Irlanda, era preciso intervir na Irlanda para salvar Portugal, agora é preciso intervir em Portugal para salvar a Espanha, a Itália e a Bélgica. Esta fila indiana perfilada para o sacrifício é o disfarce sórdido que os especuladores usam com mestria para ocultar a verdade: no fim, são realmente eles os únicos que se salvam e que ganham. E não é outra a lógica deste carrossel sem fim de subjugação das periferias europeias.

A desorientação da Eurocracia foi bem sintetizada pelo prémio Nobel Paul Krugman, quando falou do “masoquismo europeu” e da “mania europeia da austeridade”, exigindo uma transformação da política europeia.

O facto é que Portugal não pode continuar a pagar juros seis e sete vezes superiores à taxa de crescimento do produto, como assinala Krugman. Além de estarmos a pagar dinheiro que realmente não devemos porque não gerámos essa dívida, mais cedo do que tarde esses valores são insustentáveis. Mas a maior das perversidades que a estratégia da claque do FMI nos traz é a de somar suspensão da democracia ao esmagamento económico e social.

O FMI é um dos lados da bifurcação com que Portugal está hoje confrontado na escolha do seu futuro. Mas nada tem um só lado, não há caminhos únicos. O outro lado é o da democracia. Porque a democracia é o campo em que todos têm igual cidadania e, por ser assim, é o campo de serviços públicos que compensem as assimetrias de poder na sociedade. Eis pois clarificada a nossa escolha: ou o FMI ou a democracia. Não há terceira via.

Declaração Política na Assembleia da República -13 de Janeiro de 2011

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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