Está aqui

A confusão do Não é uma estratégia

Ao longo dos últimos dias, a campanha do Não parece ter explodido. Ninguém se entende, uns dizem uma coisa e outros o seu contrário. Uns querem punir e outros querem não punir. Uns falam da vida inviolável e outros das condições em que a mulher pode abortar e não ser presa.

Uns, como Gentil Martins e César das Neves, insistem na punição da mulher, incluindo a sua prisão. Outros, como Marcelo Rebelo de Sousa, propõem a despenalização desde que a mulher continue a ser considerada criminosa. É confusão ou estratégia? Acho que a confusão é a estratégia. Os primeiros são radicalmente coerentes com o discurso sobre a "vida". Acham que a gravidez provocada pela violação não pode ser interrompida, porque é um assassinato. Comparam a mulher que aborta a assassinos (versão Bispo da Guarda) ou a narcotraficantes (versão Marques Mendes). São coerentes com a história do Não: a seu tempo, votaram contra a Lei que prevê as três excepções, porque entendem que mesmo nesses casos a mulher não pode abortar. E, se o fizer, deve ser presa.

Os segundos, o Não de Marcelo, apareceram mais recentemente, dizendo que, afinal e tudo bem pensado, a mulher não deve ser penalizada, embora o aborto deva ser considerado crime. Crime sem castigo. Há uma criminosa, mas não acontece nada.

A partir do dia da apresentação deste segundo Não, uma boa parte dos seus extremistas assumiu esta nova veste e somente Gentil Martins continua a insistir na prisão das mulheres. Fazem-no por uma razão que demonstra vitórias da campanha do Sim. Essa razão é a rejeição, pela maioria da sociedade, da penalização e perseguição às mulheres. Assim, o Não perde. Para ganhar, o Não quer por isso convencer muitas pessoas que recusam a penalização das mulheres a votarem pela continuação da sua definição como criminosas. O imbróglio já foi bem esclarecido pelos juristas instruídos do Gato Fedorento.

Restam os dois argumentos de Marcelo.

O primeiro é que não se pode deixar à mulher a decisão. Marcelo não esclarece quem deve decidir em vez da mulher. Um juiz? A junta de freguesia? Um árbitro de futebol? Um catedrático de medicina? O tio-avô da mulher? Argumentar que deixar a decisão à mulher é permitir a banalização e a irresponsabilidade é afirmar que a mulher é irresponsável e incapaz de decidir. Ora, a lei actual já usa o critério da decisão da mulher (quando há malformação do feto, risco de vida ou violação). E como é que podia ser de outra forma?

O segundo argumento de Marcelo é que há no Parlamento uma lei proposta para que a mulher não seja julgada nem presa. O facto é que a direita nunca agendou nenhuma proposta dessas e, depois do referendo anterior, só aumentou o número de julgamentos. E a proposta que existe, da deputada Rosário Carneiro, define que o processo só não vai a julgamento se a mulher se declarar criminosa. Fica tudo dito. Não há no parlamento nenhuma proposta de despenalização, há a lei actual que persegue e ameaça com 3 anos de prisão e há propostas para apontar a mulher como criminosa.

E está submetida ao voto de todas e de todos uma pergunta muito simples: despenalizamos ou não a interrupção voluntária de gravidez quando a mulher decide?

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
(...)