Está aqui

Cavaco Silva, o primeiro-ministro

Cavaco esqueceu-se provavelmente de qual é a finalidade de um Presidente da República e tornou-se no principal – e quase único – rosto de defesa do governo.

Na década de 1990, o então primeiro-ministro Cavaco Silva criou as raízes das políticas internas que ainda hoje estamos a pagar. A proposta que fez aos portugueses era simples e assentava num contrato não escrito: os salários continuariam baixos, o crédito seria barato e sem muita dificuldade de acesso. A banca saía a ganhar, pois claro, mas essa parte parece continuar a ser uma constante desde então. As famílias com salários baixos começaram a poder comprar, mas os anos foram passando e os salários não aumentaram. Pelo contrário, o agravamento da situação económica e social, a crise que se instalou e a fórmula mortífera da austeridade como solução única fizeram desaparecer o poder de compra e aniquilaram ainda mais os rendimentos. A crise, como todos bem sabemos, continua a ser paga, sobretudo, às custas dos salários e das pensões, ao que se junta uma taxa de desemprego que nos últimos dois anos tem galopado. O crédito? O crédito encareceu e tornou-se praticamente inacessível, estrangula as famílias e a procura interna que, sendo necessária para qualquer retoma, contínua perdida por terras longínquas.

Nesta descrição dei o passo de duas décadas para chegar até agora, na semana em que Cavaco Silva deixou de ser Presidente e se assumiu como primeiro-ministro, uma vez mais para a nossa desgraça. O discurso proferido na cerimónia da comemoração oficial do 25 de Abril humilha quem fez passo a passo as etapas desta história que ele iniciou com responsabilidades reconhecidas. Cavaco anulou o seu papel de intermediário, deixando por isso de se assumir como o presidente de todos os portugueses, mas dirigiu-se a todos eles para lhes pedir mais sacrifícios. Disse ainda que os portugueses que não estão satisfeitos não têm alternativa, uma vez que fazer eleições é coisa do passado e isto das decisões importantes é para ser deixado à Troika e aos que lhe obedecem – o governo, a maioria que o apoia e quem sabe um possível consenso alargado. Cavaco esqueceu-se provavelmente de qual é a finalidade de um Presidente da República e tornou-se no principal – e quase único – rosto de defesa do governo. Nunca tive ilusões, mas quem algum dia as teve bem pode perdê-las. Cavaco Silva escolheu ignorar os apelos de um povo que já não aguenta. Tudo isto se passou no dia da liberdade e é por ela e pelo futuro de uma democracia que tentam matar que temos a obrigação de dizer basta.

Artigo publicado no jornal “As Beiras” em 27 de Abril de 2013

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
(...)