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Cavaco, assombração de verão

Agosto termina hoje. Sim, eu sei que esta coluna não é para calendário, mas a informação é importante. Hoje é o último dia, segundo o calendário político, da chamada silly season.

A silly season é a altura do ano que vai de meados de julho até ao final de agosto. Com o país a banhos, de chinelo e calção, o efémero torna-se senhor da torrente informativa e a banalidade disputa-lhe os escaparates. Há exceções a esta regra, é claro, a política não é feita a régua e esquadro. Com os incêndios que tivemos neste ano, o verão foi bem sério, muito mais do que o habitual, com a dimensão da morte a tornar-nos pequenos. Mas, quando falamos de atividade político-partidária, a tradição ainda é o que era.

Este introito serve para nos situarmos, dado que toda a teoria afirma que, em política, o timing é um fator essencial. Assim, quando Cavaco Silva - um dos mais experientes políticos profissionais do país - escolhe regressar ao ativo em plena silly season, mais de metade da análise está feita sem precisarmos de nos esforçar muito. Obrigado ao professor Cavaco por, desta vez, não nos complicar muito a vida: comparando com o seu passado recente, demonstra que a reforma lhe está a fazer bem.

Contudo, tenho dificuldade em desligar de uma análise mais profunda. Defeito meu, é certo, que o objeto de estudo não merece tanto. Mas não consigo evitar... Afinal de contas, o discurso de Cavaco Silva foi feito na universidade de verão do PSD, perante uma plateia de jovens, ávida por fazer o seu caminho na jota. Quem sabe os que continuam da jota para o partido e daí para o Parlamento ou até tentam ir para um governo? Mais vale sabermos a escola que tiveram, já diz o povo que o seguro morreu de velho.

Lembrem-se de que já nos apanharam desprevenidos uma vez: sem dar muito nas vistas, os alunos de Cavaco Silva juntaram-se e formaram um banco, distribuíram milhares de milhões de fundos comunitários e fizeram enormes negociatas. Quando chegou a conta desse regabofe, ainda vieram bater à porta de todos nós pedindo para pagarmos a fatura da festa que fizeram. No entanto, hoje não é para fazermos essa arqueologia política, apenas o aviso para não baixarmos a guarda.

Cavaco Silva foi transmitir uma mensagem fundamental aos jovens aprendizes de político: "A realidade impõe-se à ideologia." Uma afirmação que segue na esteira do que disse na primeira entrevista que deu depois de sair da Presidência da República: "A realidade ultrapassou-me." Juntando a duas frases, não precisamos de ser psicanalistas para perceber a grande angústia que ele enfrenta, que lhe retira o sono e lhe causa ansiedade: a realidade.

Cavaco Silva criou uma crise política depois das últimas eleições legislativas, em finais de 2015. A crise dos 50 dias nasceu do choque cavaquista com o resultado eleitoral. A sua visão ideológica não admitia que os votos no Bloco de Esquerda ou na CDU fossem tão válidos como os votos dos outros partidos. A sua recusa em admitir a realidade apenas adiou o inevitável. A Constituição mandou mais do que a intransigência presidencial e a realidade impôs--se. A direita foi varrida do poder e o Parlamento afirmou que havia alternativa.

Vencido, mas não convencido, Cavaco Silva nunca se conformou com o desfecho. Assumiu-se como o velho do Restelo, o terror sobre o futuro que se avizinhava. A sua intervenção pública na indigitação de António Costa para formar governo é uma peça magistral de azia política. O fel daquelas palavras carrega o desejo de um desfecho trágico. Mas, mais uma vez, o choque com a realidade mostra a falibilidade do político com a carreira política mais longa do Portugal democrático.

O aumento do salário mínimo nacional, que em dois anos subiu 52 euros mensais e irá continuar a subir anualmente, não encaixa na ideologia de Cavaco Silva. Não causou desemprego, nem recessão económica. A realidade mostrou como foi essencial para a criação de emprego.

A eliminação dos cortes salariais, o aumento das pensões (até a poupadinha pensão do professor foi aumentada!), a eliminação da sobretaxa de IRS ou o reforço dos apoios sociais não levaram o caos às contas públicas. A realidade provou que foram essenciais para recuperar a confiança e ajudar à retoma económica.

O pio do professor é de ave de mau agoiro. Falhou o prognóstico tremendista e agora quer emendar a mão, ensaiando mais uma crítica que não bate certo: não houve uma revolução socialista em Portugal, apenas a demonstração de como era possível parar a austeridade.

Diz o filósofo que a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Depois da tragédia da presidência de Cavaco Silva, agora chega a farsa da assombração.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 31 de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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