A Autoeuropa e as Comissões de Trabalhadores

porAdelino Fortunato

27 de outubro 2017 - 21:58
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A greve da Autoeuropa e o debate que se lhe seguiu levantaram várias questões importantes. Uma delas relaciona-se com o papel das Comissões de Trabalhadores (CTs).

A tradição alemã, e a Autoeuropa é um exemplo dela, é a de dar às CTs o direito à informação e à participação nas decisões ao nível dos locais de trabalho (fábricas) e a uma representação mista de CTs e sindicatos nos Conselhos de Supervisão da empresa. É um sistema “dual” que separa o órgão de supervisão e fiscalização daquele que se dedica às tarefas executivas. A representação dos trabalhadores nos Conselhos de Supervisão não só é obrigatória nas empresas com mais de 2000 trabalhadores, como é paritária em relação ao número de representantes dos acionistas. Resumidamente são estas as caraterísticas do modelo de codeterminação (mitbestimmung) alemão, uma modalidade de cogestão que reserva um espaço de influência aos trabalhadores na governação das empresas, em contraposição com o modelo anglo-saxónico, que confere aos acionistas e a representantes por estes escolhidos exclusividade naquele processo.

O destaque dado às CTs na Alemanha é antigo. Já em 1891 a lei previa CTs numa base voluntária, uma conquista do movimento operário para combater os flagelos sociais da industrialização tardia. Mas na I Guerra Mundial, na sequência da requisição de grandes empresas para a produção de material de guerra, sindicatos e o Partido Social Democrata (SPD) forçaram a consagração legal obrigatória das CTs, ainda que os desentendimentos entre sindicatos e CTs começassem a fazer-se sentir. A Constituição da República de Weimar (1919) instituiu as CTs como órgãos ao nível da empresa, mas também como organizações políticas representativas dos trabalhadores. E após a II Guerra Mundial a reconstrução fez-se de forma a evitar o renascimento bélico das indústrias que apoiaram o nazismo (carvão e aço do Rhur) de duas formas: por intermédio da codeterminação, com os representantes dos trabalhadores a fiscalizarem a atividade dos executivos das grandes empresas, e pela integração na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA).

A relevância das CTs inicialmente resultou do protagonismo do forte movimento operário alemão no contexto dos ecos da revolução russa de 1917 e do papel dos sovietes na auto-organização dos trabalhadores, mas a codeterminação vem sendo usada para assegurar “paz social”, isto é, conciliação entre trabalhadores e patronato, fazendo dos trabalhadores um stackeholder (uma parte interessada) ao lado dos acionistas, consumidores ou fornecedores na gestão das grandes empresas. O “milagre alemão” e os fortes ganhos de produtividade do pós-guerra, partilhados entre trabalhadores e patronato, ajudaram a manter este esquema virtuoso de sustentação da atividade económica em colaboração com os próprios sindicatos. Mas o esquema, se formos capazes de ver para além das fronteiras das empresas, ajudou também a gerir outra conjuntura de sinal oposto, quando o chanceler Gerhard Schroder (1998-2005) impôs a contração negociada dos salários e outras medidas de austeridade.

Assim se compreendem as apreciações opostas que se fizeram da greve decretada na Autoeuropa. Para alguns observadores tratou-se de pôr em causa um modelo de governação que gerou muito bons resultados no passado, realçando o papel da democracia nas tomadas de decisão e o diálogo entre as partes, que terão evitado as posições extremadas e até perdas de postos de trabalho. São aqueles que se identificam globalmente com a envolvente social-democrata do modelo de codeterminação. Há depois os representantes sindicais que atacaram a prática da CT por não estarem acostumados à aplicação do modelo de negociação dominante, mas sobretudo por não controlarem a CT. Se a dominassem não teriam feito nada de muito diferente. E há, finalmente, aqueles que compreendendo as caraterísticas do modelo de governação da Autoeuropa veem nelas uma oportunidade para defender os trabalhadores numa lógica de transformação social. Estes viram na greve uma aproximação aos métodos da luta revolucionária anticapitalista.

Adelino Fortunato
Sobre o/a autor(a)

Adelino Fortunato

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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