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Até onde importam as telas quinhentistas

Esta novela das telas sob suspeita, expostas com pompa no MNAA, tornou-se mesmo uma espécie de mistério da estrada das Janelas Verdes. Só é conhecido o que vem a público mas pode arriscar-se que haverá condimento q.b., cuidadosamente resguardado.

Recapitulemos:

1. A ensombração começou com os adiamentos sucessivos, de setembro para novembro de 2016 e depois para o início de 2017 que afinal se revelou ser apenas em fevereiro. Adiamentos é o que mais pode acontecer em exposições: nem tudo depende apenas de uma pessoa, há um coletivo que é preciso coordenar e a probabilidade de não se conseguir o controlo de todas as situações é muito grande. Percebe-se mas não deveria acontecer. E no MNAA, não devia ter acontecido. O MNAA não é um museu de vão de escada, tem pessoal muito habilitado e experimentado, o anúncio devia ter sido mais cauteloso. Estes adiamentos constituíram em si mesmos um mau prenúncio. Por conhecer ficaram as razões de tamanho contratempo;

2. Mesmo antes da inauguração, um título de caixa alta a causar estupefacção “Museu de Arte Antiga abre as portas a obras suspeitas” (Expresso, 18 fev 2017, p. 27). Um susto. Lê-se a notícia e custa a acreditar. São as críticas de fora mas também a polémica interna que terá alastrado aos conservadores. Para quem trabalha em instituições patrimoniais, representa um abalo. Imagine-se, a Biblioteca Nacional ou o Museu de Arqueologia ou a Torre do Tombo a prepararem-se para expor obras de credibilidade duvidosa. A expor falsificações e mesmo assim a fazer a festa;

3. Ainda nessa data (Expresso/Revista) um extenso artigo assinado por Diogo Ramada Curto chama a atenção de forma fundamentada, e erudita, para o caráter duvidoso de duas telas centrais para o tema da exposição. Serão autênticas?! Isto é, foram pintadas nas datas que lhes foram atribuídas ou simplesmente tratam-se de pinturas a fazerem-se passar por antigas?! Imaginem um manuscrito dito autógrafo ou um livro impresso numa tipografia até aí nunca identificada ou uma lucerna envelhecida para parecer antiga sobre os quais viessem a recair dúvidas do mesmo calibre. Quem se atreveria a expor um manuscrito que não tivesse sido completamente escrutinado? Ou um livro que pudesse deixar margem para dúvida sobre a tipografia em que fora impresso? Ou uma lucerna recolhida num sítio romano inexistente? Nas respetivas instituições, as cabeças rolariam;

4. Na semana seguinte, de novo no Expresso (25 de fevereiro, p. 20-21) outra reportagem sobre as telas insustentáveis. Mais nomes, mais opiniões, uns a favor, outros duvidosos mas os responsáveis muito calados, nada de declarações. “O calado é o melhor”. Nem o diretor do MNAA nem as comissárias da exposição a quem coube a proposta para a exposição, por assim dizer o guião da mesma e, portanto, a escolha das peças a expor. Um enredo completo. Este silêncio assemelha-se a um virar de costas ao público que tem acarinhado o MNAA, público a que o diretor recorre para se bater pela aquisição de peças essenciais para a cultura portuguesa. Ou não foi isto que aconteceu com o Sequeira? O público, que respeita o MNAA, merece mais;

5. Ainda neste mesmo Expresso, uma nota da Redação chamava a atenção para este à vontade dos responsáveis, atuando à revelia de qualquer parâmetro democrático, sem escrutínio, desprezando o público. Tudo lamentável;

6. A procissão vai no adro… e a 4 de março, o Expresso brinda-nos com um longo artigo de Vítor Serrão, historiador de arte, para rebater o anterior texto de Ramada Curto. Trata-se de um texto chocho sobre o qual cai, de novo, Ramada Curto com uma resposta no mesmo jornal e dia. Não se trata do “diz tu, direi eu” porque a coisa é séria. Mas, claramente, Vítor Serrão não fica bem na fotografia. E não é preciso ser professor universitário, nem entendido em arte para seguir e perceber a novela. Basta ler;

7. Novo capítulo. Expresso, 4 de março. Pelo meio ficavam mais declarações e sobretudo uma entrevista do Ministro da Cultura na qual ele afirmava estar a aguardar… não se percebe o quê. Clarificou-se agora. Ao fim e ao cabo, nem diretor do MNAA nem ministro pedem exames laboratoriais para verificar da autenticidade dos quadros. O que os demoveu?! Como é que no auge desta incerteza podem justificar a retirada? Se houve intenção, evaporou-se; se foram feitos os rascunhos dos pedidos, ficaram na gaveta. Ou seja, vamos ao MNAA com a fortíssima probabilidade de ir “comer gato por lebre”. Os quadros até podem ser magníficos; o facto de serem falsos não lhes rouba obrigatoriamente a beleza mas, então, estamos a olhar para o quê? Para que servem duas telas altamente suspeitas? Elas vieram até às Janelas Verdes para comprovar, iconograficamente falando, como Lisboa, cidade do Sul da Europa, se abria ao mundo, como era cosmopolita, local onde circulavam e viviam as mais desvairadas gentes. As telas até registam a urbanização da grande metrópole, verdade ou mentira? Esqueceram-se, claro, que uma falsificação até se aprimoraria nestes pormenores...

Claro que estas são perguntas do foro científico que o público quer ver respondidas. Mas ainda ficam questões mais comezinhas para resolver num tempo de orçamentos escassos e em que todos nos viramos do avesso para não sossobrar: alguém foi ver a tela a Inglaterra? Então, nós pagámos. A tela veio, devidamente segurada. Nós pagámos. A tela veio de Inglaterra acompanhada por um curador responsável que, como é normal nestas circunstâncias, ficou uns dias instalado num hotel. Nós pagámos o acondicionamento e transporte da peça, a viagem de avião do curador mais o hotel em Lisboa. A tela está instalada debaixo de temperatura, humidade relativa, iluminação e dispositivos de segurança conforme prescrito nos manuais e não é pouca coisa. Nós pagamos. A tela emprestada por Jo Berardo também incorre, umas vezes mais outras menos, nestes gastos todos, tendo sido desajustado o comentário do proprietário transcrito no Expresso. Tudo custa dinheiro, nada é de graça. Claro, nós pagamos. E se não pagamos diretamente porque pode ter havido mecenato específico para a montagem da exposição, perdemos porque, então, o mecenato bem podia ter sido aplicado noutra exposição, no empréstimo de outras peças que quando for preciso, nós pagaremos. Mas não é só o dinheiro. É a dignidade de um largo grupo profissional e dos seus mais próximos parceiros. Arquivista ou conservador de museu ou bibliotecário, não são profissões que se escolham por outros motivos que não sejam uma grande vontade de servir a cultura, de recolher, tratar e defender o património. Dar ao património condições para ser usufruído. Ora, com esta novela, ficamos todos em causa. Uns porque são tomados por papalvos; outros porque deixaram a ética profissional na gaveta.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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