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Assédio moral no trabalho: sofrimento e “pranto pelos dias de hoje”

Trabalhar, por mais aparentemente autónomo, individual, que o trabalho seja, é sempre viver com os outros.

“ - Como é que um homem se assegura do seu poder?
Winston reflecte:
- Fazendo-o sofrer, responde ele.
- Exactamente. Fazendo-o sofrer. Não é suficiente que obedeça.”

(George Orwell – 1984- editado em 1949)

"Assédio moral no trabalho” é um conceito porventura estranho a muita gente, mesmo a quem – o que é mais preocupante – é vítima dessa prática.

Contudo, considerá-lo apenas um conceito técnico (gestionário, psicológico, sociológico ou legal) escamoteia a violência humana, mental e física, que muitas destas situações constituem.

Sim, sem exagero, pode-se afirmar que é uma forma de violência (e, daí, em certas circunstâncias poder agora ser caracterizado como crime), tal como outras formas de violência que causam sofrimento às pessoas.

Aliás, há relações do assédio moral no trabalho com outras formas de violência cujo estudo careceria de ser aprofundado, como é o caso, por exemplo, da violência doméstica, e o do assédio moral na escola (mais conhecido por bullying escolar).

Se bem que a comunidade académica há muito tenha este tema por objecto de estudo e, ultimamente, tenha crescido a atenção da comunicação social para estas práticas nos locais de trabalho, a sociedade em geral continua ainda pouco conhecedora (e, sobretudo, reflexiva) sobre o trabalho que as pessoas, de facto, realizam nos locais de trabalho e em que condições (como, onde, quando, quanto, com quê, com quem …) o realizam.

Os “fazedores de opinião” (o jornalismo, a comunicação social e, até, grande parte da comunidade académica, para já não dizer dos políticos) cristalizaram e propagaram muito a sua concepção de “trabalho” apenas naquele sentido que, abstracto, emana dos artigos da legislação e dos números e percentagens das estatísticas do “mercado de trabalho”, onde, humana e socialmente, as pessoas “não existem” ou, pelo menos, passam muito “despercebidas”.

Mas o trabalho concreto, real, consubstancia-se nas pessoas que trabalham e, por isso, para quem trabalha, a garantia de no trabalho lhe serem respeitados os direitos e a dignidade (e, muito por via disso, a saúde, até a vida), é uma das condições de também no trabalho se ser pessoa, e não apenas “recurso”, “factor de produção”.

Essa concepção do trabalho como se consubstanciando nas pessoas que trabalham projecta muitas implicações e de vária ordem (humanas, sociais, económicas, políticas, etc) mas, no que respeita ao tema deste artigo e sendo mais concreto, implica, toque-nos ou não directa ou indirectamente, que não se pode ficar indiferente em situações em que alguém que trabalha ao nosso lado ou de algum modo conhecemos (e ainda mais se desse alguém somos familiares ou amigos) sofre (mental e fisicamente) por ser intencional, continuada e sistematicamente, humilhado, desprezado, ostracizado, atemorizado, discriminado, destruído psicologicamente (e, por aí, até física, familiar e socialmente) no seu trabalho ou por causa deste.

Por exemplo (meros exemplos, tantos outros há), em situações em que não há qualquer escrúpulo em, por essas práticas, fazer com que alguém se desespere ao ponto de ser forçado a despedir-se (muitas vezes já com muitos anos de antiguidade e sem nisso ter interesse objectivo); ou naquelas em que se tenta afastar alguém que “faz sombra” na progressão da carreira; ou, ainda, naquelas em que um trabalhador “incomoda” ao informar, criticar ou propor (muitas das vítimas de assédio moral no trabalho são os trabalhadores que se destacam pela sua competência, empenho e brio profissional - e que, portanto, mais autoridade moral têm para criticar e propor) sobre o que corre mal na empresa ou no departamento da administração pública (central ou local) em causa.

Trabalhar, por mais aparentemente autónomo, individual, que o trabalho seja, é sempre viver com os outros. E quando, no trabalho, já não é possível viver com os outros, então, mais tarde ou mais cedo, torna-se até difícil viver por não ser possível trabalhar com os outros (e casos há, conhecidos, em que situações de assédio moral levaram ao limite do suicídio).

É certo que as práticas de "assédio moral" no trabalho têm responsáveis pessoais directos, têm nomes e apelidos.

A maior parte das vezes, pela prepotência que o desequilíbrio de poder induz, o nome e apelido é do empregador ou de outros superiores hierárquicos. Mas também não são raros os casos em que, ainda mais perversamente, é de colegas de trabalho e, até, de trabalhadores de empresas subcontratadas que intervêm no mesmo local de trabalho. Ou, mesmo, de clientes ou utentes.

Contudo, sabe-o muito bem quem continuadamente e de perto acompanhou nos locais de trabalho em que condições (materiais e sociais) se desenvolvem as relações laborais, que tendo em conta a raiz das suas causas, as práticas de assédio moral no trabalho são suscitadas por sistemas organizacionais e modelos (e modos…) de gestão que, cada  vez mais, colocam os trabalhadores sobre pressão quase permanente: a precarização dos vínculos laborais como regra (quando legalmente é excepção), o fomento da competição desenfreada entre as pessoas, induzida por modelos de avaliação individual de desempenho, a individualização da organização do trabalho, o desaparecimento dos colectivos de trabalho, a sobreintensificação do trabalho (ritmo e duração), a inexistência nos locais de trabalho de oportunidades e sedes de socialização (e, logo, de procura de entreajuda) das dificuldades e de conhecimentos. Isto, para já não referir falhas e discriminações na selecção, integração, enquadramento hierárquico e formação das pessoas que, depois, se projectam no anuviamento do ambiente socio-laboral, o qual, assim, é “terreno fértil” para germinarem e se desenvolverem, agravando-se muitas situações de assédio moral.

Daí que, não obstante o assédio moral ter, como se escreveu, “nome e apelido”, não basta sancionar os comportamentos individuais de quem é nessas práticas agressor directo para suprimir o problema.

Não é possível pensar o trabalhador sem (o) pensar na situação de trabalho, sem o compreender no condicionalismo material e social (inclusive relacional) da situação de trabalho. E, consequentemente, na organização empregadora (empresa ou administração pública) onde essa situação de trabalho se desenvolve.

Mesmo nos casos em que o "nome e apelido" é de colegas de trabalho, por trás (às vezes, até à frente…) desses nomes, também sempre estão, de facto, de algum modo associados, os "nomes e apelidos" dos representantes da entidade empregadora (administradores, gerentes, gestores, chefias...) que, por acção ou omissão, objectivamente, fizeram com que (ou deixaram que) emergissem e se alimentassem ou agravassem essas situações. As mãos de Pilatos não ficaram limpas mesmo depois de as ter “lavado”.

Sim, de facto (como também o é de direito), o assédio moral é sempre um problema organizacional e, como tal, por (em) princípio, um problema / responsabilidade da entidade empregadora.

Nos “dias de hoje”, dada a dimensão deste problema em Portugal e a crescente precarização / fragilização das pessoas nas relações de trabalho (muito do desemprego e da continuada desregulamentação e desregulação de direitos laborais e sociais que, pelo menos de á trinta anos para cá se tem verificado), urge que os trabalhadores se informem e, tanto quanto possível, exercitem os seus direitos que, neste domínio, lhes conferem as disposições legais que enquadram estas situações.

Em coerência, é premente o envolvimento interventivo, eficaz e oportuno (se bem que difícil e complexo), das instituições com especiais competências neste âmbito e matéria, essencialmente, da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e dos tribunais.

De qualquer modo, por parte de quem delas é sustentadamente conhecedor, há que cada vez mais denunciar publicamente estas práticas, como, felizmente, por aí já se vêem, ouvem e lêem alguns exemplos nos órgãos de comunicação social.

É que, a quem a essas práticas é sujeito (vítima) na "caixa negra" das empresas e da administração pública, é a maior parte das vezes muito difícil muitas vezes poder credivelmente até descrevê-las, em virtude da sua imaterialização e dissimulação. E tão ou mais difícil lhes é reunir condições para as provar, documentalmente ou por testemunhas.

Sim, muitas vezes, pode-lhe ser angustiante não poder desmontar o “manto diáfano” da hipocrisia, da indiferença e até do cinismo tecido pela falta de solidariedade profissional, tanto mais quando e quanto tendo como pano de fundo a falta de responsabilidade social e ética empresarial que existe em algumas organizações empregadoras. E ainda mais quando dentro delas prepondera o medo induzido pela precariedade das relações de trabalho e dos baixos salários que tão imprescindíveis são ao sustento pessoal e familiar.

Perdoe-se-me a “blasfémia” de tão em vão invocar a Poetisa num assunto que, apesar de importante, tão comezinho é, relativamente aos valores sem dimensão que estiveram subjacentes a um dos seus preciosos poemas, mas, sem prejuízo disso, vem aqui a propósito (até porque este também  denuncia, de forma sublime, o sofrimento) este excerto de um seu belíssimo poema: "Nunca choraremos bastante quando vemos / (…) / Que quem ousa lutar é  destruído / Por troças por insídias por venenos / E por outras maneiras que sabemos / Tão sábias tão subtis e tão peritas / Que nem podem sequer ser bem descritas." (Sophia de Mello Breyner Andresen - Pranto pelo dia de hoje - Livro Sexto – 1962).

 

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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