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Antecipar o Futuro, tal qual o rei vai nú!

Nós, trabalhadores da cultura queremos mais substância e nem mesmo com o amparo do editorial do JCV, a entrevista põe fim a um longo e doloroso período de desatenção e abandono da cultura.

Ouvi que o ministro da cultura tinha dado uma entrevista, densa, cheia de matéria consistente. Coisa boa, pensei, e precipitei-me para o quiosque não fosse a procura ser tão grande que eu lá perdia o JL (4 Jan. 2017). Antes de chegar à entrevista, parei no editorial. Uma loa total à pessoa do ministro, à acção do ministro, à entrevista. Com o Real Gabinete Português de Leitura pelo meio. Não carecia, como diriam os cariocas.

Depois a entrevista. Um título um pouco demagógico mas, enfim, prometedor. Primeiro, as boas notícias. A urbanidade do ministro, o estilo conciliador, um pouco em estilo de salão mas tudo aceitável tratando-se de questões de cultura, não de geologia. Sim, claro, o anúncio que haverá bolsas, um reequacionar do Plano Nacional de Leitura, uma mãozinha às livrarias independentes, concursos para apoio às artes.

Assim, à primeira vista, só coisas com as quais concordamos embora eu desconfie dos planos de leitura porque as crianças lêem os títulos que estão na lista e selecionados pelos professores, sim, mas será que ganham o gosto para ler para além da authority list? As crianças que eu conheço, não. Cumpra-se a lista, qb.  Uma outra boa notícia é acabar com as fusões economicistas feitas como foi o caso das bibliotecas públicas com os arquivos, sobretudo o arquivo nacional. Não sabiam do que estavam a tratar, urge pôr fim a essa coisa abstrusa.

Mas a jornalista denunciou como é grande a impreparação quando, tão ingenuamente!, pergunta “vai separar de novo a Biblioteca Nacional dos Arquivos?”. De novo?! Não, não estão ligadas estas instituições, estiveram décadas atrás, a jornalista informou-se mal. O ministro não pestanejou vá-se lá saber porquê. 

Talvez um bom reflexo diplomático lhe tenha aconselhado a passar ao largo. Agora, as más notícias que se resumem facilmente. Todas as respostas remetem para o futuro. Quanto ao desfazer da fusão “gostaríamos de reverter quando possível”; as bolsas “vamos preparar o regulamento e escolher um júri”; em defesa das bibliotecas “vamos fazer uma unidade de missão” e “o programa vai sobretudo incidir” e quanto às livrarias independentes “constituímos um grupo…para estudar como será possível defendê-las”; também “vamos aumentar os apoios à tradução”…fico-me por aqui que é para evitar referir o destino da Cornucópia ou o futuro incerto dos teatros, dos museus, mesmo das bibliotecas e arquivos, tão carentes, tão fragilizados.

Não, Sr. Ministro, não carecia dar uma entrevista para ficar nos prolegómenos. Nós, trabalhadores da cultura queremos mais substância e nem mesmo com o amparo do editorial do JCV, a entrevista põe fim a um longo e doloroso período de desatenção e abandono da cultura, das artes performativas aos museus, do livro às bibliotecas e arquivos, do património monumental à música. Por favor, passe à prática, concretize, ponha à prova a sua política e depois diga ao JCV que tem matéria para uma conversa. Os encómios não nos distraem. 

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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