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1% do PIB para a cultura. Para quê?

É ousado pedir 1% do PIB para a Cultura quando a Cultura e as indústrias culturais representam, dizem todos os observatórios, entre 3% e 5% do PIB total?

Uma política pública de cultura clara, transparente, determinada nos seus propósitos programáticos e nos seus enunciados políticos, em vez de práticas de carácter assistencialista e caritativo ou de um reducionismo mercantilista que não tem deixado pedra sobre pedra onde tem sido implantado, é o mínimo que se pode esperar no âmbito de um governo de esquerdas. Eis a oportunidade para se estabelecer um momento de viragem na forma de pensar um orçamento para a Cultura. Um plano que finalmente deixe de fazer a pergunta “1% para a Cultura para quê?”, que esqueça o número em si, os “milhões” para a Cultura, e se preocupe em criar sistematicidade da ação política neste campo.

Esta opção implica consideração pelas diferentes escalas de criação, produção e de difusão, garantindo diversidade formal, estética e ideológica, implica respeito pelos direitos dos trabalhadores da Cultura, e obriga a um compromisso sério com a infraestruturação e a orgânica dos serviços de Cultura e Artes, quer ao nível da administração central, quer da articulação possível com as políticas locais. Configura um não redondo a uma mera política de apoios e subsídios e estabelece um verdadeiro programa de política pública, que seja para todos, desde a produção, à difusão e ao acesso aos bens culturais. Não é um plano de regulação ou de controlo, antes o desafio para uma política pública para a Cultura numa sociedade democrática: criar espaço para as abordagens culturais das grandes questões do nosso tempo, garantir a liberdade na produção e no acesso à cultura, sem controlo ideológico, político ou estético, sem imposições, sem coação ou censura.

Se a cultura tem sido agredida pela direita porque enfiada constantemente em pacotes turísticos ou em produtos de entretenimento de receita fácil, como se o património cultural e artístico devesse ser rentabilizado em eventos de massas ou em hotéis de luxo, é urgente recuperar a defesa da Cultura na sua dimensão pública. A anterior legislatura, à direita, não teve pejo em demonstrar coerência na austeridade instalada, varrendo o ministério da Cultura e impondo o sufoco orçamental às instituições culturais, humilhando e culpabilizando os trabalhadores das artes e da cultura pelo simples facto de o quererem ser, obrigando-os à condição de prestadores de serviços avulso, esporádicos, ornamentais.

Que se seja coerente agora e que se assuma, neste enquadramento político à esquerda, a defesa de um orçamento de Estado que não tenha de pedir desculpas por conceder espaço político e dotações orçamentais consistentes para a Cultura. Que se assuma, finalmente, a Cultura como essencial para o desenvolvimento e para a maturação da democracia, que se assuma a Cultura como condição determinante na realização das aspirações democráticas mais elevadas da sociedade portuguesa. Sem desculpas ou justificações, esqueçamos a pergunta e avancemos com respostas.

Em sede de discussão sobre o próximo orçamento de Estado, a pergunta “1% para a Cultura, para quê?” continua a ouvir-se. Como se a questão não fosse antes: porque é que o valor consignado para a Cultura em Portugal, nos últimos 3 anos, não arrecadou mais do que 0,1% do PIB? Ou, porque é que desde o ano 2000 o valor máximo atribuído à Cultura rondou os 0,4% do PIB? É ousado pedir 1% do PIB para a Cultura quando a Cultura e as indústrias culturais representam, dizem todos os observatórios, entre 3% e 5% do PIB total? Quando ainda há poucos anos o PIB da cultura já ultrapassava o PIB da indústria têxtil em Portugal? O investimento em Cultura tem sido mínimo e os resultados estão à vista em todos os indicadores do EuroBarómetro relacionados com a participação cultural e com a perceção e valorização dos portugueses em relação à ciência, à cultura e às artes, níveis esses que diferenciam as sociedades europeias mais desenvolvidas.

1% do PIB. Sim, do PIB. Se o PIB é o valor da riqueza que todos conseguimos criar (pessoas, empresas ou outras entidades públicas e privadas com o que se produz, o que se compra, o que se investe ou o que se exporta), não seria expectável que fosse distribuído de forma mais equitativa por todas as áreas onde é necessário fazer despesa para garantir o acesso dos cidadãos a bens e serviços essenciais? E agora vem a inexorável interrogação: “a cultura é essencial?” E a perturbadora resposta: Sim. É essencial porque dela emerge uma cidadania mais crítica, informada e participativa. Sim, porque ao contrário do que muitos querem fazer crer, não tem nada que ver com um produto, tem a ver com uma construção que é nossa, diária, permanente, que é gerada na interação dos indivíduos, sim, na interação de pessoas, que somos nós. É um sistema, não um fim.

Cabe ao Ministério da Cultura preocupar-se e assegurar as condições para que todos tenham acesso à cultura e para que possam, idealmente, ser criadores, agentes culturais, fruidores das artes ou artistas, leitores ou escritores. O Ministério da Cultura tem competências tão vastas como a tutela da televisão pública (RTP), a comunicação digital e as redes de distribuição televisiva, a gestão do património edificado, arqueológico e móvel; abarca, também, os assuntos dos museus, das bibliotecas, dos arquivos, dos editores e livreiros, das artes visuais (como o cinema ou a fotografia), das Belas-Artes e outras artes plásticas, das artes performativas (como a dança e o teatro), da música, do espetáculo, e ainda garante a “internacionalização da Língua”, com o Instituto Camões e outros programas e planos no campo da lusofonia e das políticas de cooperação agregadas a este sector.

Este conjunto de assuntos inclui e obriga a garantir, cuidar e manter as infraestruturas (equipamentos, edifícios, materiais…), as instituições (organizações e associações) e as pessoas, os trabalhadores e trabalhadoras que, por exemplo, garantem que os livros se fazem, que hão-de ir parar à biblioteca da nossa terra, onde podemos levantá-los gratuitamente para ler na esplanada do jardim enquanto esperamos pela hora do teatro, que será apresentado naquele palco onde eu já tive aulas de dança e onde hoje o meu filho toca com a orquestra sinfónica todos os domingos. Esses trabalhadores que abrem museus ao fim de semana, para que possamos deambular entre obras de arte e tesouros raros; os trabalhadores dos arquivos onde jazem as cartas dos nossos avós, os músicos que fazem as canções que não nos saem da cabeça, os atores e dramaturgos que nos arrepiam a pele ou os bailarinos com pirouettes que nos fazem sonhar.

Sim, essa gente da cultura e das artes que afinal nos fazem lembrar, pensar e sentir e agir. É esse, afinal, o sentido das coisas. Afinal, se calhar a cultura só serve para nos lembrarmos para que serve o corpo, para que estamos aqui, para que servimos nós.

Será 1,7 mil milhões de euros assim tanto para tudo isto?

Sobre o/a autor(a)

Diretora do Museu Carlos Reis - Torres Novas, Técnica Superior de Cultura
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