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A greve dos enfermeiros

A greve dos enfermeiros, na semana de 11 a 15 de Setembro, mobilizou a atenção pública, dada a expressão mediática e a atenção política que lhe foi dada.

Muita dessa expressão se terá devido a aproveitamento mediático–mercantil e politiqueiro mas a razão mais relevante talvez tenham sido as consequências nefastas no sector da Saúde (concretamente, no Serviço Nacional de Saúde), com atrasos e outros constrangimentos na prestação de cuidados de saúde a utentes, mormente em domínios muito específicos, como, por exemplo, cirurgias e obstetrícia.

Neste tipo de conflitos laborais em que está em causa o serviço público, mais humana e socialmente relevantes são as condições de emprego e de trabalho, visto que as consequências da degradação dessas condições não se projectam apenas no próprio trabalhador e no seu estrito contexto social (por exemplo, na sua saúde, na sua vida pessoal, na sua família) mas, também, dada a natureza pública do serviço a prestar e os valores em causa, na qualidade e segurança dos objectivos que esse trabalho visa (saúde, educação, segurança, justiça, etc.), ou seja, na própria sociedade, como já se escreveu no Públicoi. ainda não há muito tempo, a propósito da última greve dos médicos.

O que os enfermeiros reivindicam, objectivamente, são legítimas condições de trabalho: uma carreira profissional que responda às expectativas de efectivo reconhecimento das qualificações e natureza do trabalho exercido , progressão e realização profissional, o tratamento igual em duração de trabalho entre enfermeiros funcionários públicos (com uma duração semanal de 35 horas) e enfermeiros trabalhadores em funções públicas (com uma duração semanal de 40 horas). Reforçando essas reivindicações, denunciam ainda muita mobilidade de local de trabalho e sobreintensificação do trabalho em ritmo e duração com, em muitos casos, consequências de "exaustão" física e ou mental (burnout).

É impossível, com estas razões, apesar do que atrás foi dito quanto ao impacto negativo que uma greve neste sector pode ter (como, de facto, teve) no Serviço Público (e concretamente no Serviço Nacional de Saúde), dizer-se que o objecto (e objectivo) declarado da greve não tem fundamento.

Porém, há décadas que esta situação se mantém e, mesmo, muito agravada entre 2011 e 2014: com mais desemprego, emigração forçada e ainda mais sobreintensificação do trabalho (este Governo já promoveu a admissão de centenas de enfermeiros) e todos, mas todos os enfermeiros a praticarem 40 horas de trabalho (a diferença de duração semanal de trabalho que agora existe não é porque este governo a tenha aumentado aos enfermeiros não funcionários públicos mas porque repôs aos enfermeiros funcionários públicos o horário de 35 horas que o governo anterior tinha passado para 40 horas).

Por que é que, nesse tempo, os enfermeiros não fizeram qualquer greve com o objecto e objectivo com que agora organizaram esta?

Há quem aponte razões partidárias e outras menos ligadas a esse objectivo estritamente laboral formalmente declarado pelos grevistas.

Muito embora seja nítido que a Oposição “cavalga” esta greve para obter dividendos partidários na luta contra o Governo e de se conhecerem publicamente alguns indícios nesse sentidoii, não há aqui base, objectiva, para se afirmar que, essencialmente, foi qualquer (eventual) instrumentalização partidária que orientou os representantes dos enfermeiros e estes próprios, individualmente, na mobilização para a greve.

Isso não significa que se deixe de considerar que o actual Governo, dois anos já passados desde que tomou posse, conhecendo o problema, por seu mal (é notório o desgaste político que podia porventura ser reduzido ou mesmo evitado), não avançou talvez o suficiente (em diálogo e em medidas) na reflexão e, tanto quanto possível, na resolução das situações concretas que são a essência do problema: condições de trabalho e justiça profissional..

Por exemplo, no mínimo, na harmonização da duração semanal do trabalho nas 35 horas. O que, inclusivamente, seria um bom sinal pedagógico para o sector privado (também) reduzir a duração do trabalho, num país onde o desemprego ainda é alto e onde, de direito e muito mais de facto, a duração do trabalho é das mais altas da União Europeia).

Pois, apesar de dito isto, por estranho e paradoxal que pareça, diz-se também que há uma raiz eminentemente política e mais profunda para a explicação da realização (só) agora desta greve. E, mais, que esta é, ao mesmo tempo, um elogio político (ainda que indirecto) ao actual Governo.

É que os enfermeiros não fizeram esta greve antes, concretamente, entre 2011 e 2014, também muito porque se terão conformado com o discurso amedrontador de que “é preciso empobrecer para sair da crise” e de que “não há alternativa” (TINA), bem como com a nítida orientação política (do Governo) para o menosprezo pelas condições de emprego, de trabalho e de vida das pessoas em favor do financeirismo tecnocrata e desumano em que se admitia como normal e elogioso que “o país estivesse melhor , apesar de não as pessoas” … que, realmente (e não apenas estatisticamente…), consubstanciam o “país”.

Apenas agora, com a modificação, há dois anos, da situação político-governativa, e subsequente abandono e derrota desse discurso (e prática, ainda que, até agora, não o suficiente) “TINA” do governo anterior e a melhoria da situação económica e social, os enfermeiros saíram desse conformismo letárgico e, consciente e ou inconscientemente, se terão convencido que a sua situação poderia ser modificada e que, no entanto, não o estava a ser. E daí, também muito daí, o desencadeamento (só) agora da greve.

Muito embora seja quase “blasfémico” aqui invocar (relativamente) “em vão” uma explicação que, há 48 anos, Hanna Arendt utilizou para a análise da perseguição e extermínio dos judeus pelos nazis, arrisca-se isso, pela sua pertinência (tradução livre):

“(…) A revolta não é, em caso algum, uma reacção automática, face à miséria e ao sofrimento enquanto tal; nenhuma pessoa se revolta perante uma doença incurável, um terramoto ou face a condições sociais que lhe parece impossível modificar. É apenas quando tem boas razões para crer que essas condições podem ser modificadas e que não o são que a revolta se desencadeia (…)” (Hanna Arendt – Crises da República, 1969).


i “Serviços públicos e condições de trabalho ou “o trabalho dá saúde” (e vice-versa)”, Público, 31/5/2017 - https://www.publico.pt/2017/05/31/economia/noticia/servicos-publicos-e-condicoes-de-trabalho-ou-o-trabalho-da-saude-e-viceversa-1773940

ii Não se escreve razões políticas, porque qualquer greve é inelutavelmente política, já que se há algo central e transversal na Política (e escrevo com maiúscula. ..) é o Trabalho (também com maiúscula), na medida em que este, humana, social, economicamente, ... enfim, ontologicamente, é, sempre, ao mesmo tempo, nascente, leito e foz da política (a História, a Sociologia, o Direito, a Economia, etc. evidenciam bem isso).Por isso, ser a greve ou não política, não é questão que se coloque (e muito menos que repugne), porque a própria explicação final que se apresenta neste texto (com a "ajuda" da Hanna Arendt) para a realização (só) agora desta greve não pode ser mais política.

A questão que, essa sim, se coloca, é se é de algum modo partidária(zada). E, de facto, há alguns indícios disso (o desajustado protagonismo da bastonária, a alegada filiação partidária desta no PSD, a marcação da greve para um proximidade tão grande das eleições autárquicas, o distanciamento da greve do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses ...).

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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