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Basta dar a volta à praxe?

Não basta querer virar as praxes do avesso, ou seja, tornar o abuso aceitável e a prática violenta numa coisa apetecível. Cair na falácia argumentativa da praxe boa e da praxe má, maquilhando um flagelo social, é varrer o pó para baixo do tapete.

O estudo sobre as praxes académicas, encomendado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior a uma equipa de académicos é o primeiro documento que expõe a nu, com profundidade e baseado numa análise científica, uma realidade cada vez mais discutida mas ainda pouco conhecida.

Neste debate tão importante, que recentra a discussão sobre o tipo de comunidade académica é que construímos no seio da universidade, importa afastar alguns fantasmas: ninguém quer criar “polícias da praxe”, mas a violência lá praticada tem de ser punida, tal como qualquer outro crime

O relatório é extenso. Descreve, com bastante pormenor, a realidade da praxe, analisa a forma como se organiza, como opera, como se relaciona com o resto da comunidade académica, como esconde a(s) violência(s) praticadas no seu seio. Mas não se limita a isso: também propõe linhas de atuação muito concretas, nomeadamente: um levantamento das estruturas de apoio psicológico e jurídico existentes em todas as Instituições de Ensino Superior; a criação de gabinetes de apoio à vida académica; a sensibilização das direções das Instituições de Ensino Superior para o não reconhecimento das estruturas informais e não legitimadas das praxes académicas; e a recomendação às instituições, em articulação com as associações de estudantes, a abertura de um debate interno sobre as vantagens e desvantagens da proibição das práticas de praxe no campus da instituição.

Acompanhamos as conclusões apresentadas neste estudo que, diga-se de passagem, existe porque o Bloco batalhou por ele, durante anos.

Porém, as medidas que o Ministro Manuel Heitor apresenta para o tema da praxe ignoram as conclusões do estudo sobre o fenómeno. O programa EXARP - dar a volta à praxe é insuficiente e fica aquém das expectativas.

No campo do combate ao abuso, devem existir dois eixos de ação: a dinamização de atividades integradoras e que apresentem uma alternativa viável ao que existe hoje e a criação de mecanismos de prevenção, de apoio à vítima e de fiscalização sobre os dinheiros públicos que, diretamente ou indiretamente, financiam a praxe.

Não basta querer virar as praxes do avesso, ou seja, tornar o abuso aceitável e a prática violenta numa coisa apetecível. Cair na falácia argumentativa da praxe boa e da praxe má, maquilhando um flagelo social, é varrer o pó para baixo do tapete. Combater culturalmente a praxe e todo o ideário social que a sustenta significa, hoje, enfrentar poderes instalados sem ter medo de dar os passos que são necessários.

Neste debate tão importante, que recentra a discussão sobre o tipo de comunidade académica é que construímos no seio da universidade, importa afastar alguns fantasmas: ninguém quer criar “polícias da praxe”, mas a violência lá praticada tem de ser punida, tal como qualquer outro crime. Os mecanismos que facilitem a prevenção, denúncia e apoio às vítimas só devem ser bem-vindos e não podem ser vistos como punitivos - eles são justamente o contrário pois são o apoio para quem não tem mais onde recorrer senão à justiça. O papel do legislador e do próprio Governo é de proteger os mais frágeis. Cá estaremos para garantir que assim acontecerá.

Artigo publicado em p3.publico.pt a 22 de março de 2017

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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