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As utopias de Michael Löwy. Notas de apresentação por José Neves

No âmbito da conferência em Lisboa organizada pelo Teatro Maria Matos e IHC/UNL sobre os Cem Anos da Revolução de Outubro, e em Coimbra organizada pelo CES-UC, a Ler Devagar/UNIPOP publica uma coleção de textos de Michael Lowy, organizada por José Neves. Este é o texto de apresentação do livro.
Conferência e apresentação do livro Utopias, de Michael Löwy
Conferência e apresentação do livro Utopias, de Michael Löwy

Neste livro encontram-se três tradições intelectuais: o judaísmo libertário de cultura alemã, o Romantismo de inspiração socialista de um grupo de historiadores e cientistas sociais britânicos e, last but not least, um marxismo especificamente latino-americano, forjado nas dinâmicas histórico-sociológicas da região que se estende de Buenos Aires a Havana. Interpelando cada uma destas tradições, Michael Löwy tem vindo a cultivar um tipo de sensibilidade utópica particular, de perfil marxista mas pouco dada a celebrar «os amanhãs que cantam». As utopias que o atraem não se projetam no futuro radioso a que a marcha da História nos conduzirá, mas em tempos passados que o Progresso deu por mortos e enterrados. São elas, entre outras, a utopia de Ernst Bloch, que encontrou alento revolucionário na cultura cristã medieval e na arte gótica; a utopia de William Morris, que fez da Inglaterra pré-industrial o seu paraíso; ou, ainda, a utopia de José Carlos Mariátegui, o militante peruano cujas aspirações comunistas levaram de volta ao comunitarismo inca. Este é, enfim, um livro acerca de utopia e de marxismo, mas também sobre romantismo, como se a nostalgia por um mundo anterior aos processos de modernização pudesse caminhar lado a lado com a revolta contra o capitalismo moderno.

É certo que, ao longo da sua vasta obra, o autor nem sempre deu à crítica romântica a mesma relevância que atribui à teoria marxista. Quando encontrou a ideia de romantismo anticapitalista em György Lukács, a quem dedicou o estudo Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires: l’évolution politique de Lukács 1909-1929, Michael Löwy fez com que a mesma identificasse uma condição político-ideológica prematura cujo amadurecimento dependeria de uma evolução em direção ao marxismoi. No entanto, num segundo momento da obra de Löwy, a cuja transição não foi alheio o impacto da leitura que Raymond Williams fez daquele seu estudo lukacsiano, o marxismo surgirá menos enquanto idade adulta do Romantismo do que como seu parii. De resto, um dos livros mais importantes da bibliografia de Löwy é justamente dedicado à questão romântica: Revolta e Melancolia – O Romantismo Contra a Corrente da Modernidade, escrito com Robert Sayre, que é também coautor de um dos ensaios reunidos no presente volumeiii.

Os oito ensaios que se seguem – que selecionei com a anuência do autor – são enovelados por um mesmo fio crítico, o do marxismo romântico. Esse fio convida-nos, por um lado, a nadar contra as correntes que tornaram o marxismo do século XX refém de uma conceção economicista da realidade e de um exercício instrumental do poder político; e, por outro, a tomarmos distância face a algumas das expressões políticas que a crítica romântica assumiu na época contemporânea. Se o marxismo de Löwy insiste na necessidade de reconstruir pontes entre a tradição marxista, o surrealismo e o anarquismo e toma como referência política a figura de Rosa Luxemburgoiv, o seu romantismo, ainda que generoso na hora de considerar a complexidade de todas e cada uma das expressões políticas da crítica romântica, demarca-se das pulsões mais conservadoras ou autoritárias que ela pode tomarv. Note-se, por exemplo, o modo como o autor se relaciona com o legado nietzscheano: atrai-o a intempestividade subjacente à crítica nietzscheana da História, mas não o «elitismo aristocrático» do grande filósofo alemãovi.

Da intersecção entre Romantismo e marxismo resulta, então, se não a instituição de uma tradição intelectual autónoma, a configuração de uma sensibilidade específica que perpassa textos tão diversos como Vers un romantisme révolutionnaire, de Henri Lefebvre, The Making of the Engish Working Class, de E. P. Thompson, A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, ou, mais recentemente, Mudar o Mundo sem Tomar o Poder, de John Holloway. E, com estes e outros textos e autores, tem Michael Löwy mantido um diálogo a um tempo amistoso e críticovii. A singularidade da sua contribuição para o pensamento contemporâneo em geral e para a renovação romântica do marxismo em particular evidencia-se em duas marcas desse diálogo: a multiplicidade histórico-geográfica dos interlocutores e a variedade temática das conversações mantidas. Se neste livro se trata da Escola de Frankfurt, discute-se também o Exército Zapatista de Libertação Nacional; e se é de política que estes ensaios se questionam, são também as filosofias da história e a religião que neles se problematizaviii. Em suma, entre os autores que pretenderam levar a cabo uma interpretação revolucionária da crítica romântica, Löwy talvez seja o que se espraiou por territórios, fenómenos e figuras mais diversificados: a Mitteleuropa, o Brasil, a Revolução Cubana, o Maio de 68, a sociologia do conhecimento, as experiências surrealistas, o messianismo judaico, a militância trotsquista, a teologia de Thomas Müntzer, o utopismo de Bloch, o racionalismo de Eric Hobsbawm, a literatura de Kafka.

A sua trajetória de vida ajuda a compreender tão variado leque de interesses. Filho de pais judeus provenientes de Viena, Michael Löwy nasceu no Brasil no ano de 1938, obteve a sua licenciatura em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo em meados dos anos 1950 e na década seguinte partiu para Paris, onde realizou o doutoramento e prosseguiu uma carreira académica que o tem levado aos quatro cantos do mundoix. Todavia, no seu próprio processo de trabalho intelectual vemos ganharem força certas linhas teóricas que, por si só, contribuem para a amplitude de assuntos e de tradições intelectuais referida. Gostaria de mencionar duas dessas linhas, as quais, de resto, permitem-nos igualmente compreender melhor o encantamento do autor por utopias de cunho romântico.

A primeira linha é traçada pelo princípio do desenvolvimento desigual e combinado, porventura o contributo teórico mais importante de Leon Trotsky para o marxismo do seu tempo e acerca do qual Löwy tem tido intervenções paradigmáticasx. Compreendendo que a dinâmica internacional da economia reside na articulação entre modos de produção diferenciados, tal princípio admite que o mundo na sua totalidade pode ser experimentado a partir de qualquer ponto do seu território e que toda e qualquer época histórica é suscetível de ser considerada atual. É assim que os textos lowyianos sobre o marxismo e a questão nacional reconhecem quer o problema da opressão nacional e colonial quer a hipótese de um projeto internacionalista de sentido cosmopolita – porque o desenvolvimento é desigual, a opressão é uma realidade ineludível; porque o desenvolvimento é combinado, é possível apostar no internacionalismo como estratégia de respostaxi. E é também nesta sequência que podemos compreender razões para o interesse de Löwy pelas utopias românticas. A melancolia que estas tantas vezes exprimem conservará uma atualidade que lhes permite constituírem-se num sentimento de esperança que se decline de modo revolucionário. Contra conceções homogéneas do tempo – subjacentes quer à ideia de um mundo globalizado e sincronizado quer à ideia de que cada nação tem a sua hora própria e particular –, revela-se aqui uma sensibilidade ao tempo atenta não apenas aos mecanismos de reprodução social, às estruturas económicas e às continuidades históricas, mas também à insubmissão social, aos antagonismos de classe e à rutura política. Como se o passado não fosse um país distante e o Romantismo constituísse, «queira-o ou não, uma crítica moderna da modernidade», da mesma forma que os países que tomamos por distantes – pertencentes a civilizações tidas como outras – são-nos bem mais próximos do que fazem querer os efeitos do exotismo, «uma busca do passado no presente por meio de um simples movimento que se desloca no espaço»xii.

A segunda linha teórica que gostaria de considerar nesta ocasião é traçada pela preocupação de reconciliação de duas grandes tradições intelectuais tantas vezes dadas como adversárias, a de Marx e a de Weber. Löwy fará da reconciliação entre ambos um objetivo central de um seu livro recente, La Cage d’acier, falando mesmo da hipótese de um marxismo weberiano, que há muito cala fundo no seu posicionamento sociológicoxiii. Na senda de Lucien Goldman (e as suas «visões do mundo») e de Raymond Williams (e a sua «estrutura de sentimento»), trata-se de superar os limites tanto de um materialismo economicista como de um idealismo pouco sociologizante. O modo como as religiões e o religioso são tratados em alguns ensaios que se seguem é exemplar desta superação. E a própria ideia lowyiana de conhecimento, tendo como ponto de partida o seu estudo Paysages de la vérité: Introduction à une sociologie critique de la connaissance, acabará por dever igualmente à sua leitura de Weberxiv. Veja-se a utilização do conceito de «afinidade eletiva» como forma de relacionamento entre diferentes espaços e tempos de um mundo que, sendo uno, Löwy reconhecerá sobretudo em razão dos antagonismos que o constituem e das suas bifurcações. De resto, tal como a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, também o conceito-chave de «afinidade eletiva» suscitará o esforço autorreflexivo de Löwy, que num pequeno ensaio nos deu conta da codificação sociológica do conceito por Weber e da sua definição no campo literário com Goethe, mas também da sua formação no quadro da alquimia medieval, onde o termo afinidade começou a ser usado de modo a «explicar a atração e a fusão dos corpos»xv. Ou uma certa química não fosse necessária tanto à consumação dos amantes como à comunhão de uma vontade coletiva revolucionária.

 

Notas:

i Michael Löwy, Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires: l’évolution politique de Lukács 1909-1929, Paris, PUF, 1976. O livro encontra-se igualmente acessível em língua portuguesa, em edição brasileira: Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários, São Paulo, Ciências Humanas, 1979. Existe também uma segunda edição brasileira com o título A evolução política de Lukács 1909-1920, São Paulo, Cortez, 1998.

ii Raymond Williams publicou uma recensão em torno do estudo de Löwy na revista New Society (24/1/1980). A recensão foi recentemente traduzida para português e publicada num livro de homenagem a Löwy: Raymond Williams, «O que é anticapitalismo?», em Ivana Jinkings e João Alexandre Peschanski (orgs.), As Utopias de Michael Löwy – Reflexões sobre um Marxista Insubordinado, São Paulo, Boitempo Editorial, 2007, pp. 53-56.

iii Michael Löwy e Robert Sayre, Revolta e Melancolia – O Romatismo contra a Corrente da Modernidade, Venda Nova, Bertrand, 1999. Edição original francesa datada de 1992. O ensaio «A corrente romântica nas ciências sociais da Inglaterra: Edward P. Thompson e Raymond William», publicado no presente volume, é escrito em autoria com Sayre. Para um entre outros exemplos do cariz seminal deste estudo, veja-se: Marcelo Ridenti, Em Busca do Povo Brasileiro. Artistas da revolução, do CPC à era da TV, São Paulo/Rio de Janeiro, Record, 2000.

iv Michael Löwy, L'Étoile du matin: surréalisme et marxisme, Paris, Syllepse, 2000. Existe uma edição brasileira: A Estrela da Manhã: Surrealismo e Marxismo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002. Olivier Besancenot e Michael Löwy, Affinités révolutionnaires. Nos étoiles rouges et noires. Pour une solidarité entre marxistes et libertaires, Paris, Mille et une nuits, 2014.

v A complexidade da abordagem de Löwy às expressões políticas da crítica romântica manifesta-se a dois níveis. Em primeiro lugar, através da grelha tipológica que – com Sayre – cria em Revolta e Melancolia. Essa grelha contempla categorias como as de romantismo populista, romantismo restitucionista, romantismo resignado, romantismo fascista, romantismo marxista, romantismo jacobino-democrático, romantismo utópico, etc.. Em segundo lugar, ao sublinhar que, se determinados autores e obras podem ser identificados pelos diferentes tipos de romantismo por si inventariados, estes não raras vezes manifestam-se, inclusivamente nas suas contradições, num mesmo autor ou até numa mesma obra.

vi Löwy dedicou um livro às teses de Benjamin sobre a História: Michael Löwy, Walter Benjamin: Avertissement d'incendie, une lecture des thèses «Sur le concept d'histoire», Paris, PUF, 2001. Existe edição brasileira: Michael Löwy, Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”, São Paulo, Boitempo, 2005. O ensaio sobre Benjamin publicado no presente livro, e onde Löwy faz a crítica do que reputa de elitismo aristocrático de matriz nietzscheana, condensa uma parte dos argumentos desse livro.

vii Sobre a leitura lowyiana de Thompson, veja-se o ensaio neste mesmo livro. Acerca de Lefebvre e Debord, entre inúmeras referências nos seus livros, veja-se dois ensaios de Löwy: «The revolutionary romanticism of may 1968», em Thesis Eleven, v. 68, n. 1, pp. 95-100, 2002; «Guy Debord: consumido pelo fogo noturno», em José Neves (org.), Da Gaveta Para Fora – Ensaios sobre Marxistas, Porto, Afrontamento, 2006, p.159-164. Quanto ao diálogo com Holloway, veja-se: http://www.johnholloway.com.mx/2011/07/31/intercambio-entre-michael-lowy-y-john-holloway/ (consultado em 26 de agosto de 2016).

viii O lugar da política no pensamento de Löwy pode ser visto de duas formas: por um lado, o trabalho intelectual em geral e o inquérito marxista em particular devem tomar como seu objeto não apenas a política mas também outros domínios; por outro, a política deve ser entendida como uma instância de intervenção determinada a partir de vários domínios – como por exemplo o religioso – e não apenas de um domínio especializado – como seria o de uma ciência política ou de uma política científica. Esta valorização da política que não tem na cientificidade o seu garante foi sublinhada por um dos principais companheiros políticos e intelectuais de Michael Löwy, o filósofo francês – e igualmente militante da IV Internacional – Daniel Bensaïd. Veja-se, por exemplo: Daniel Bensaïd, «Lenin, ou a Política do Tempo Partido», em Michael Löwy e Daniel Bensaïd, Marxismo, Modernidade e Utopia, São Paulo, Xamã, 2000, pp.177-191.

ix Outros elementos biobibliográficos podem ser encontrados no livro de homenagem citado: As Utopias de Michael Löwy.

x Michael Löwy, «La théorie du développement inégal et combiné», em Actuel Marx, n.º 18, 1995, pp. 111-119; Michael Löwy, The Politics of Uneven and Combined Development, Londres, Verso, 1981.

xi Sobre marxismo e questão nacional, veja-se: Michael Löwy, Fatherland or Mother Earth? Essays on the National Question, Londres, Pluto Press, 1998. Veja-se também que a noção de aposta ocupa um lugar específico no pensamento lowyiano, nomeadamente em resultado da influência de Goldman: Michael Löwy, «Lucien Goldmann ou a aposta comunitária», Estudos Avançados, v. 9, n.º 23, pp. 183-192, 1995.

xii Löwy e Sayre, Revolta e Melancolia, pp. 31-34.

xiii Michael Löwy, La Cage d’acier. Max Weber et le marxisme wébérien, Paris, Stock, 2013. Existe edição brasileira: A Jaula de Aço: Max Weber e o marxismo weberiano, Boitempo Editorial, São Paulo, 2014.

xiv Além dos vários ensaios publicados nas últimas décadas e que têm a religião como tema, dos livros especificamente dirigidos ao estudo do judaísmo libertário ou da teologia da libertação (M. Löwy, The War of Gods: Religion and politics in Latin America, Londres, Verso, 1996; Rédemption et utopie: le judaïsme libertaire en Europe centrale, Paris, PUF, 1989 – ambos com edição brasileira), assim como de diálogos constantes com figuras como o seu amigo Frei Betto, destaquem-se os volumes sobre sociologia das religiões que Löwy escreveu com Erwan Dianteill: Sociologies et religion – approches classiques, Paris, PUF, 2001; Sociologies et religion – approches dissidentes, Paris, PUF, 2005; Sociologies et religion – approches insolites, Paris, PUF, 2009. Sobre a sociologia do conhecimento, além de vários ensaios especificamente em torno de Karl Manheim, refira-se o trabalho inicial Paysages de la vérité: Introduction à une sociologie critique de la connaissance (Paris, Anthropos, 1995), recentemente republicado em França com novo prefácio e novo título, agora semelhante ao da sua edição brasileira: Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, São Paulo, Cortez, 1994.

xv Michael Löwy, «Le concept d’affinité élective chez Max Weber», em Archives de Sciences Sociales des Religions, Paris, n.º 127, pp. 93-103, 2004.

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