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O ataque “incrivelmente limitado” de Donald Trump à Síria

O ataque contra a base aérea síria de Shayrat é na verdade o primeiro tiro da grande estratégia em marcha de Trump. Artigo de Gilbert Achcar.
Foto U.S. Pacific Fleet/Flickr

Poucas vezes um ataque tão limitado como o lançado pelos EUA com mísseis de cruzeiro contra a base aérea síria de Shayrat provocou tanto ruído. O presidente dos EUA, Donald Trump, autorizou o ataque ao anoitecer de quita. 6 de abril, pouco antes de juntar-se ao jantar com o homólogo chinês, Xi Jinping, na sua mansão de Mar-a-Lago na Florida. É muito provável que o ataque tenha sido uma das opções mínimas postas ao dispor de Obama quando o regime sírio atravessou a sua “linha vermelha” em agosto de 2013. Numa das suas declarações memoráveis, John Kerry qualificou essa opção de “esforço muito limitado, muito pontual, muito a curto prazo”, um esforço de seria “incrivelmente limitado”.

A hipótese de o Pentágono ter lançado mão este plano antigo  parece ser corroborada pelas declarações do ministério da Defesa russo, cujo porta-voz descreveu o ataque nestes termos:

A 7 de abril, das 3h42 às 3h56 (hora de Moscovo), dois contratorpedeiros da marinha dos EUA (USS Ross e USS Porter) realizaram um ataque massivo com 59 mísseis de cruziero Tomahawk desde a zona próxima à ilha de Creta (no Mediterrâneo) contra a base síria de Shayrat (na província de Homs). De acordo com os dados do acompanhamento objetivo, 23 mísseis alcançaram a base aérea síria… Portanto, a eficácia militar do golpe massivo norte-americano com mísseis contra a base aérea síria é extremamente baixa. Hoje é evidente que o ataque com mísseis dos EUA estava planeado muito antes deste acontecimento. É necessário [normalmente, antes de um ataque deste tipo] realizar operações de reconhecimento, planear e preparar as trajetórias de voo dos mísseis e pô-los em alerta de combate total. É evidente para qualquer especialista que a decisão de atacar a Síria com mísseis foi tomada muito antes do que se passou em Jan Sheijun, que se converteu numa mera justificação formal do ataque, enquanto a demonstração de poderio militar surgiu ditada exlusivamente por razões de política interna.

O ataque foi tão “incrivelmente limitado” e os seus efeitos dissuasórios tão escassos que a força aérea síria recomeçou os seus bombardeamentos sobre Jan Sheijun no dia seguinte, enquanto começavam os trabalhos de reparação na base aérea de Shayrat. Contrariamente aos numerosos comentários sobre o milagre que teria acontecido se Barack Obama tivesse dado ordens para um golpe semelhante em 2013, o mais provável é que não teria mudado grande coisa no curso da guerra na Síria.  Só um ataque em muito maior escala podia ter um efeito importante em semear o pânico nas hostes do regime de Assad. Se o anterior presidente tivesse mantido a sua “linha vermelha” em 2013 com um ataque “muito limitado” como o que lançou Trump, no melhor dos casos podia ter prevenido o assassinato com armas químicas das 86 vítimas de Jan Sheijun, mas não teria salvo a vida de quase meio milhão de sírios que foram vítimas de armas “convencionais” desde o começo da guerra.

A própria “linha vermelha” de Obama era em tudo imoral. Era como dizer: “Matem todos os que quiserem com armas convencionais, mas não utilizem armas químicas porque podem salpicar para além da fronteira”. Estas últimas armas foram proibidas, como declarou Obama a 20 de agosto de 2012, porque “é uma questão que não diz respeito apenas à Síria; diz respeito aos nossos aliados na região, incluindo Israel”. Quanto às lágrimas de crocodilo de Trump pelos “lindos bebés” massacrados pelas bombas de gás, foram incrivelmente hipócritas. De facto, é muito difícil acreditar que o presidente dos EUA nunca tenha visto bebés sírios assassinados e mutilados na Fox News, a sua única fonte de informação “fiável”. A sua luz verde ao ataque “incrivelmente limitado”, concebido durante a presidência do seu predecessor, não foi de forma alguma um ato espontâneo, fruto da indignação moral. Apressado do ponto de vista militar,  o ataque respondeu a uma decisão política bem refletida. O seu impacto político foi incrivelmente grande, de facto. Luke Harding resumiu de forma correta os seus resultados no Guardian:

Para a Casa Branca, esta quinta-feira trouxe claros dividendos. Após um período caótico, em que o governo se viu acossado pelas suas aparentes ligações ao Kremlin, as notícias mudaram totalmente de rumo. Durante meses, Trump tinha sido incapaz de fugia às acusações de que estava combinado com Putin antes das eleições norte-americanas. Agora o presidente agiu abertamente contra os interesses estratégicos da Rússia. Ou pelo menos assim pareceu.

Alguns dos críticos republicanos mais severos com Trump no que toca à Rússia – os senadores John McCain e Lindsey Graham · aplaudiram a sua decisão. Horas antes do ataque, Hillary Clinton declarou que apoiava uma intervenção. O grau de aprovação de Trump nas sondagens estavam em níveis historicamente baixos. Imaginamos que agora vão começar a subir.

Mas há muito mais por detrás deste assunto que essas “razões de política interna” que tinha detetado o próprio porta-voz militar russo. O ataque a Shayrat é na verdade o primeiro tiro da grande estratégia em marcha de Trump. Encaixa perfeitamente na doutrina de Trump em matéria de política externa que Josh Rogin resumiu acertadamente no Washington Post de 19 de março, dias antes do ataque a Shayrat, com o lema: “Escalar para desescalar”. Vale a pena refletir sobre o artigo, pois o mais provável é que apareça retrospetivamente como o roteiro do que talvez iremos assistir nas próximas semanas. O ataque a Shayrat podia muito bem ser a escalada indispensável para a posterior desescalada apregoada há muito tempo por Donald Trump em relação à Rússia e um acordo com Bachar al Assad, ao mesmo tempo que foi uma mensagem destinado a Irão, o arqui-inimigo eleito pelo governo de Trump.

Ao acontecer durante o jantar de Trump com Xi Jinping, também foi – talvez acima de tudo – uma mensagem à China em relação à Coreia do Norte. Trump, que tinha ridicularizado a “linha vermelha” de Obama em relação à Síria, traçou a sua própria com a Coreia do Norte quando pôs Pyongyang “sob aviso” no início de janeiro, antes mesmo de tomar posse da presidência. Assim, o ataque a Shayrat pode ter sido um ensaio contra um objetivo mais fácil do que Trump poderia estar disposto a fazer contra a Coreia do Norte se esta prosseguir com o desenvolvimento do seu míssil balístico intercontinental: uma mensagem de Xi Jinping não pode ter deixado de ouvir.

Quem acredita que o ataque a Shayrat mostra que Trump agiu movido por sentimentos humanos e que marca uma mudança para melhor na política externa norte-americana, faria bem em rever essa impressão. O novo ataque deve observar-se unicamente como mais uma razão muito séria para estarmos profundamente preocupados pelo comportamento errático da nova administração norte-americana nos assuntos mundiais.


Artigo publicado no site Jadaliyya. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

Gilbert Achcar cresceu no Líbano e é professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na  Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres. Autor de obras como The Clash of Barbarisms (2002, 2006); Perilous Power: The Middle East and US Foreign Policy, em coautoria com Noam Chomsky (2007); The Arabs and the Holocaust: The Arab-Israeli War of Narratives (2010); The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising (2013); e, mais recentemente, Morbid Symptoms: Relapse in the Arab Uprising (2016).

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