You are here

Negacionismo: O Falso Galileu (Parte I)

O negacionismo climático não tem legitimidade científica, pois nem sequer propõe algo alternativo, com um corpo de hipóteses minimamente coerentes. Trata-se de propaganda anticiência, de desinformação, pura e simples. Artigo de Alexandre Costa.
Grafitti de Banksy: "Eu não acredito no aquecimento global" Foto Duncan Hull/Flickr

Poucas mentiras negacionistas são tão cínicas quanto a comparação que alguns deles fazem de si mesmos com Galileo Galilei e o processo do "Santo Ofício", isto é, da inquisição que quase o condenou à fogueira. Afinal, assim como na natureza, em que um bicho-pau não é um graveto, mas faz de tudo para parecer um, os negacionistas fazem-se passar despudoradamente por vítimas, quando o seu papel é justamente o oposto.

Sim, o discurso é bem montado: é como se fossem vítimas de perseguição de "inquisidores" que querem "impor um consenso" e calar os "hereges", mas a analogia só encontra algum eco porque as pessoas desconhecem quase por completo a história da Ciência do Clima, o que será a principal questão abordada nesta Parte I (a parte II será dedicada às acusações bizarras de censura, boicote, etc. que os negacionistas tentam imputar à comunidade científica).

Nem tudo o que parece é. Bicho-pau não é graveto. Negacionismo não é uma "visão científica alternativa".

De Fourier a Planck, a Ciência do Clima de mãos dadas com a Física Moderna

A hipótese de que a atmosfera terrestre poderia exercer algum papel de controlo na temperatura planetária é da década de 1820, com Fourier, então podemos até atribuir-lhe a ideia de um "efeito estufa". Mas apenas 3-4 décadas depois, de maneira independente, Eunice Foote (hoje sabemos que ela foi a primeira a reportar esse tipo de medida) e John Tyndall mostraram, em laboratório, que há gases que interagem com o calor, ou seja, foi aí que emergiram evidências "duras" a favor da ideia de Fourier. Ficou comprovado desde então que há gases, como o CO e o vapor d'água, que absorvem radiação infravermelho. Hoje, é uma experiência trivial, que pode ser repetida em laboratório com montagens bastante simples e didáticas, como neste vídeo.

Dispositivo utilizado por John Tyndall para medir a absorção de radiação infravermelha por gases.

Em paralelo, avançavam investigações em radiação térmica e não muito tempo depois, Stefan descobriu a relação entre radiação emitida e temperatura (hoje conhecida como Lei de Stefan-Boltzmann): a irradiação é proporcional à quarta potência da temperatura absoluta (isto é, na escala Kelvin). A lei de Wien, que diz que o comprimento de onda de máxima emissão é inversamente proporcional à temperatura absoluta e a relação de Stefan-Boltzmann são ambas empíricas e são conhecidas por precederem a Lei de Planck, pontapé inicial da Física Quântica. Ou seja, a história original da Ciência do Clima está intimamente ligada à própria revolução científica do final do século XIX e início do século XX.

Ora, rejeitar o entendimento de como os gases de efeito estufa interagem com a radiação, como fazem alguns negacionistas, constitui rejeitar uma parte enorme do escopo da chamada "Física Moderna", que representou um avanço substancial no nosso entendimento do mundo, com a Relatividade e a Quântica. É absolutamente impossível, a não ser por ignorância extrema ou desonestidade aberrante, negar seletivamente a Ciência do Clima e aceitar esse escopo que, por sinal, está por trás de um sem número de tecnologias que hoje usamos repetidas vezes em nosso dia-a-dia.

Arrhenius, o Eratóstenes do Clima

Na esteira das medidas de Foote/Tyndall e das relações empiricamente descobertas por Stefan e outros físicos, veio Arrhenius (sim, o mesmo dos ácidos e bases da Química do Ensino Secundário). Com base no conhecimento do final do século XIX, ele estimou que duplicar o CO atmosférico levaria a um aquecimento de 4-5°C (ou que reduzi-lo à metade provocaria um resfriamento de mesma magnitude, o que serviria de explicação para as recém-descobertas eras glaciais).

Eratóstenes de Cirene não apenas mostrou que a Terra era (aproximadamente) esférica, como calculou seu raio, dois séculos antes de Cristo.

Esse cálculo de Arrhenius deu origem ao conceito ainda hoje utilizado de "sensibilidade climática de equilíbrio" que é justamente definida como a resposta do sistema climático (em termos de variação de temperatura) à duplicação da concentração de CO. O que tem de especial nessa conta, para além das conclusões que dela viriam (inclusive de potencial influência antrópica sobre o clima) é que, em 1896, com "lápis e papel", Arrhenius não ficou tão longe senão da melhor estimativa de hoje, pelo menos do seu limite superior (a sensibilidade climática é estimada, no 5º relatório do IPCC, como entre 1,5°C e 4,5°C). Considero comparável com o feito de Eratóstenes, o grego que estimou o raio da Terra dois séculos antes de Cristo, com varetas e carroças.

De Eratóstenes a Arrhenius, aprendemos que a Terra é aproximadamente esférica, com uma atmosfera que não apenas a recobre, mas que controla sua temperatura a partir da concentração de CO, mas em tempos de terraplanismo, o negacionismo climático é canja…

O "Debate" já Aconteceu!

"Apesar de o oceano (...) agir como um regulador de enorme capacidade, reconhecemos que a percentagem do 'ácido carbónico' [como comumente chamavam o CO] na atmosfera pode, pelos avanços da indústria, mudar num grau considerável no curso de poucos séculos". Essa foi a conclusão a que chegou Arrhenius em 1906, num texto escrito para o público em geral.

A cara do Sid quando alguém diz que as "eras do gelo" são argumento contra o aquecimento global antrópico.

Evidentemente Arrhenius foi contestado, como acontece com toda a ideia científica revolucionária. Até porque "afirmações extraordinárias demandam evidências extraordinárias". Muito debate aconteceu sobre o papel do CO e do vapor d'água, na baixa e na alta troposfera. Knut Angstrom, por exemplo, teceu críticas ao trabalho de Arrhenius (a sua ideia era a de que o efeito do CO já estaria "saturado"). Arrhenius o replicou duramente em mais de uma publicação, mas percebam: esse debate sempre se deu em cima de hipóteses testáveis.

E o que aconteceu quando tais testes foram feitos? A realidade deu razão a Arrhenius. Em 1931, Hulburt mostrou que o CO disparava o que conhecemos hoje como "feedback do vapor d'água", retroalimentação climática fundamental (telegraficamente, o CO aquece a atmosfera, que passa a conter mais vapor d'água e, como este é um gás de efeito estufa, amplifica o efeito do CO). Aceitam-se as evidências, passa-se à próxima questão. É o que se espera do método científico.

Havia obviamente lacunas imensas no trabalho de Arrhenius que viriam a ser preenchidas depois. Não havia, por exemplo, pistas sobre o que poderia disparar glaciações ou deglaciações e fazer o CO variar, até os trabalhos de Milankovitch (que propôs que variações cíclicas nos parâmetros da órbita terrestre de excentricidade, obliquidade e precessão serviriam de marca-passo climático na escala de dezenas a centenas de milhares de anos). É importante dizer que Milankovitch também enfrentou resistência na aceitação das suas teses, até porque o impacto no balanço de energia da Terra por conta desses ciclos é muito pequeno para explicar variações tão grandes no clima como as que ocorrem entre glaciações e desglaciações. Hoje sabemos: Milankovitch e Arrhenius tinham, ambos, parte da verdade em mãos. O primeiro descobriu o gatilho. O segundo, o mecanismo amplificador.

Epiciclos Negacionistas

Enquanto todo esse debate acontecia, desde 1880, quando foi estruturada uma rede de observações de superfície em escala mundial, os dados estavam a ser recolhidos. E em 1938, Guy Callendar, novamente com um enorme esforço braçal (não havia tabelas de Excel naquele tempo...), encontrou as primeiras provas nesses dados de que o planeta estava a aquecer, como já mostramos no nosso blog. Ele estimou que, naquele momento, parte do aquecimento observado era natural, mas atribuiu corretamente a outra parcela ao efeito antrópico. As previsões de Arrhenius, de mais de 30 anos antes, já estavam a confirmar-se. É importante lembrar, aliás, que Callendar subestimava o ritmo das mudanças nos anos seguintes (não previu o crescimento exponencial do uso de combustíveis fósseis, que acelerou em muito as emissões) e tinha ilusões de que, pelo menos em parte, elas pudessem ser benignas ou mesmo benéficas.

Este, aliás, é outro "debate" já totalmente superado, pois sabemos que em áreas como a agricultura a tendência geral é que os problemas associados ao aumento da temperatura e da evapotranspiração potencial, bem como os desequilíbrios associados ao ciclo hidrológico, superam em muito quaisquer possíveis benefícios que o aumento da concentração de CO atmosférico possa ter sobre a fotossíntese, algo que abordamos neste vídeo. Fica a dica: se vocês prestarem atenção, verão que os "argumentos" negacionistas ou são mentiras deslavadas ou debates há muito superados.

Os epiciclos de Ptolomeu. Apegados a ideias tão ultrapassadas quanto falsas, os negacionistas estariam, na verdade, do lado da Inquisição, nunca do lado de Galileo.

Isso demonstra que o negacionismo climático na verdade é pura anticiência. A ciência avança. Não fica patinando, girando em falso em velhos debates, ignorando o corpo de evidências teóricas e empíricas. Na lógica dos negacionistas climáticos, ainda estaríamos discutindo o "éter" ao invés de abraçar a Relatividade de Einstein, ou estaríamos defendendo a geração espontânea, ou marcando passo nos epiciclos, um sistema tão elegante quanto errado, ao qual se apegava justamente a Igreja, aquela mesma, a da Inquisição, para manter a "criação divina" no "centro do universo".

Negacionismo é pseudociência criada "em laboratório"

De Fourier até o IPCC, muito avançamos: observações diversas, satélites, supercomputadores com modelos, testemunhos paleoclimáticos. São dois séculos de conhecimento científico acumulado. Enquanto os negacionistas rodam em epiciclos, hoje sabemos que o sistema climático terrestre depende de maneira fundamental de um balanço de energia e uma condição próxima do equilíbrio requer que a quantidade de energia saindo do sistema, na forma de calor, ou mais especificamente de radiação infravermelho para o espaço, seja equivalente à quantidade de energia que entra, vinda do Sol. Daí, qualquer processo físico que interfira significativamente nesse balanço ocasionará uma mudança no clima e ao se analisar todos os possíveis fatores, descartamos os fatores naturais (mudanças de atividade solar, vulcanismo, mudanças cíclicas nos parâmetros orbitais, variabilidade interna de longo prazo). Ao mesmo tempo, verificamos que a mudança na concentração de gases de efeito estufa (principalmente CO, mas também metano, óxido nitroso e halocarbonetos) que se iniciou com o período industrial e se intensificou muito após a segunda metade do século XX, é capaz de produzir um desequilíbrio energético estimado em 2,29 Watts por metro quadrado (o que multiplicado pela área do planeta nos dá uma energia maior que a explosão de 18 bombas de Hiroshima por segundo).

A causa fundamental, portanto, do aquecimento observado no clima terrestre, sem margem para dúvidas, é a emissão antrópica desses gases. Destaca-se a queima de combustíveis fósseis, agravada por desmatamento, emissões de agropecuária etc. As consequências, boa parte delas já perceptível e com a devida aferição estatística, inclui uma maior frequência de eventos extremos (ondas de calor, tempestades severas, incêndios florestais etc.), perda de massa dos glaciares e mantos de gelo, elevação do nível do mar, comprometimento de ecossistemas terrestres e marinhos (vide o branqueamento de corais), extinção de espécies.

"A não ser que a mudança climática saia da agenda, o que significa derrotar o protocolo de Kyoto e qualquer outra iniciativa futura, não haverá momento no qual possamos
declarar vitória para nossos esforços". É com esse tipo de
torpeza que lidamos.

Daí, é preciso deixar uma coisa bastante explícita: cientificamente, a questão já foi superada. É como a Teoria da Evolução ou a Teoria da Gravitação Universal. O negacionismo climático não tem legitimidade científica, pois nem sequer propõe algo alternativo, com um corpo de hipóteses minimamente coerentes. Trata-se de propaganda anticiência, de desinformação, pura e simples.

Mais do que isso. Mesmo nesse terreno não há "geração espontânea". As larvas negacionistas não brotaram simplesmente da carne podre. Houve quem colocasse os ovos. O negacionismo trata-se de um "produto de laboratório" de corporações, como a Exxon, e think tanks dos EUA, que há mais de 20 anos mimetizaram a estratégia da indústria do tabaco, que sabotou por um longo tempo as medidas de restrição ao fumo. O padrão é exatamente o mesmo: para defenderem os seus lucros, atacam o consenso científico, recrutando algumas figuras do meio académico e dos media, confundem e desmobilizam a opinião pública, agindo como verdadeiros mercadores da dúvida. Existe farta documentação mostrando não apenas os vínculos entre o negacionismo e esses interesses económicos escusos, mas inclusive que se tratou de algo pensado, elaborado, com tática e orçamento. Já abordamos este tema anteriormente, com links para farto material que evidencia o tamanho da fraude e da calhordice do negacionismo.

Daí, como mentirosos que são, detratores da ciência, os negacionistas nada têm a ver com Galileo. Eles, na verdade, são a Inquisição, tanto no campo das ideias, ao insistirem em mitos e se recusarem a aceitar as evidências que os desmentem, quanto no campo da aliança com o poder constituído, ao serem turbinados pela indústria petroquímica e outros setores económicos (no Brasil, há larga evidência de aproximação com o agronegócio), além dos seus vínculos com a extrema-direita a nível global. Então, que exijamos respeito à ciência e à figura de Galileo Galilei e não aceitemos que vilões canalhas e desonestos se façam passar por vítimas.


Alexandre Costa é doutorado em Ciência Atmosférica e professor na Universidade Estadual do Ceará. Artigo publicado no blogue “O que você faria se soubesse o que eu sei?”, adaptado para português de Portugal pelo esquerda.net. (link is external)

Termos relacionados Ambiente
(...)