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Catalunha: Uma outra economia é possível, num país novo?

A VI Feira de Economia Solidária da Catalunha trouxe ao debate as respostas deste sector no cenário de independência catalã. Artigo de Bárbara Marques Ferreira e Rogério Roque Amaro.
Foto Xarxa d'Economia Solidària/Flickr. Direitos reservados

Mais do que um artigo, este é um testemunho, na Primeira Pessoa do plural, que resulta da nossa presença e participação na VI FESC - Feira de Economia Solidária da Catalunha, entre 20 e 22 de Outubro de 2017, e na grande Manifestação, que ocorreu, em Barcelona, no sábado à tarde, 21 de Outubro de 2017.

Comecemos pela Manifestação. Na prática, tinha três objetivos ou, se quisermos, motivações, para as pessoas se mobilizarem: o apoio à Causa da Independência; a reivindicação da libertação dos dois dirigentes associativos, Jordi Cuixart e Jordi Sanchez, presos e acusados de sedição; o protesto contra a aplicação, pelo Estado espanhol, da excepcionalidade dos efeitos suspensivos da autonomia, previstos no artigo 155.º da Constituição.

Do nosso “mergulho” e envolvimento na Manifestação, sentimos, reflectimos e retivemos quatro impressões e evidências:

  • A enorme afluência de pessoas - fala-se de meio milhão, mas é difícil apontar uma estimativa bem fundamentada, podendo ter mobilizado mais do que isso, tendo em conta que era quase impossível qualquer movimentação na multidão;
  • A clara e expressiva firmeza e determinação observável em praticamente todos os rostos, todos os gestos, todas as palavras de ordem, todos os gritos;
  • A extraordinária multigeracionalidade dos/as manifestantes, pois havia gente de todas as idades, desde crianças a pessoas de idade maior;
  • O carácter interclassista da Manifestação, com pessoas de todos os estratos sócio-económicos , tanto quanto pudemos detetar;

Ademais, foi sempre muito forte a reacção popular quando a polícia surgia no horizonte (normalmente nos céus, por via de helicópteros, que iam observando a multidão), expressando a revolta contra a violência policial praticada no dia do Referendo e a atitude repressiva contra os/as independentistas.

Nos “rescaldos” das várias conversas e trocas de impressões havidas com diversas pessoas, durante e após a Manifestação, ficou claro que esta é uma luta pela emancipação de um povo e de uma Região, que pode ser associada à Independência, mas também à Democracia, ou seja, ao direito a se ser ouvido e a pronunciar-se sobre o seu destino (direito democrático à auto-determinação).

Por seu turno, a nossa participação na Feira de Economia Solidária, permitiu-nos, pelo menos, três coisas:

  • Testemunhar, mais uma vez, a extraordinária diversidade, riqueza e vitalidade de actividades, iniciativas e experiências de uma Economia baseada nos princípios e nos ideais de Solidariedade, Cooperação e Democracia, que existe na Catalunha, demonstrando que “uma outra Economia é possível” (lema de há dois anos da FESC), que “uma outra Economia já existe” (lema do ano passado) e que, nessa Economia, a lógica é “Ni teu, ni meu. Nostre ! Fem comunitat” (“Nem meu, nem teu. Nosso ! Fazemos comunidade” “Ni teu, ni meu. Nostre ! Fem comunitat” (“Nem meu, nem teu. Nosso ! Fazemos comunidade” - lema deste ano);
  • Ter o privilégio de contar e reflectir com vários/as Companheiros/as catalães/ãs o significado dos Baldios, como experiência histórica e actualizada em Portugal de gestão comunitária de um “Comum” (ou Bem Comum), demonstrando que é possível pensar e praticar modelos de gestão económica, que não sejam simplesmente privados (segundo a lógica do Mercado) ou públicos (segundo a lógica do Estado), mas que sejam colectivos e comunitários, assentes nos princípios da Reciprocidade, da Solidariedade e da Democracia Participativa, face a bens, serviços, conhecimentos e actividades, que sejam “Comuns”, ou seja, que sejam de propriedade e/ou de utilidade comunitária, requerendo, por isso, uma gestão comunitária;
  • Ter o privilégio de assistir a debates muito vivos sobre que respostas económicas, e em particular da Economia Solidária, para enfrentar os desafios da Independência da Catalunha, nomeadamente com a deslocalização (efectiva ou chantageada) de empresas e bancos para outras regiões de Espanha ou do Mundo, a que se tem assistido nas últimas semanas.

Quanto a este último ponto, são de salientar algumas reflexões extremamente interessantes e com vários aspectos de desafio e de inovação.

Sobre a saída de alguns bancos, os comentários incidiram, basicamente, em quatro respostas/ desafios. Primeiro, “vamos tirar o nosso dinheiro desses bancos”; segundo, “vamos colocá-lo nos bancos alternativos, que já existem”, nomeadamente nos que estão ligados à XES - Xarxa (Rede) Catalana de Economia Solidária (Coop 57, Fiare - Banca Etica, por exemplo), reforçando-os; terceiro, esses “bancos” ou sistemas financeiros alternativos já manifestaram a sua disponibilidade e intenção para assumirem um papel importante num sistema financeiro autónomo numa Catalunha Independente; quarto, “podemos também criar um banco público”.

Sobre o sistema económico numa Catalunha Independente, emergiram três ideias importantes:

  • A Economia Solidária já tem uma abrangência muito ampla de actividades, como demonstrado nas Feiras de Economia Solidária, que se têm realizado nos últimos anos, cobrindo uma vasta gama de produções e necessidades, sempre dentro do respeito pelos princípios da Reciprocidade (princípio económico central e identitário da Economia Solidária, que a distingue da Economia de Mercado - centrada no princípio económico da troca mercantil e com fins lucrativos e da Economia do Estado - centrada no princípio económico da redistribuição de recursos), da Democracia Participativa (interna, como modelo de autogestão, e externa, como incentivo e promoção a uma nova dinâmica societal) e da Solidariedade Sistémica, Emancipatória, Democrática e Ecocêntrica (como impulso e valor de funcionamento e de referência estratégica);
  • A Economia Solidária pode, por isso, desempenhar um papel muito importante e inovador num sistema económico novo de um novo país, abrindo caminhos para que nele Uma Outra Economia pós-capitalista seja possível;

- O risco de um eventual excesso de liquidez a verificar-se nos “bancos” e nas entidades financeiras alternativas, pela transferência anunciada de depósitos nos bancos “fugitivos” para essas outras instituições, poderia resolver-se pela disponibilidade daí resultante para investimento e concessão de créditos (com outros critérios e condições não capitalistas) a essa Outra Economia e/ou a outros agentes económicos de uma Economia catalã, reforçando assim as bases de que “Uma Outra Economia é Possível”, nos caminhos, desafios e oportunidades abertas pela luta pela Independência da Catalunha.

Neste contexto, e num quadro que agora se complexificou, com metade do Governo autónomo da Catalunha em prisão e a outra metade exilada e ameaçada de extradição, retemos e testemunhamos quatro ideias fundamentais:

  1. A forte determinação da maioria do Povo da Catalunha em lutar e obter a sua Independência como país e ainda de lutar pela Democracia, pelo direito a ser ouvido, quanto à sua autodeterminação e pelo respeito pelas suas opiniões, expressas em referendo;
  2. A disponibilidade e a firme determinação das organizações da Economia Solidária, reunidas na XES, em apoiar a causa da Independência e de contribuir para as bases económicas e financeiras de uma Outra Economia num país novo, como resulta expressamente da Declaração que a Rede emitiu nos dias da Feira e que é um documento excepcional de clareza ideológica e de propostas operacionais de concretização de uma Utopia;
  3. A certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a Independência será alcançada, mau-grado o autoritarismo desesperado do Governo de Madrid e as oposições formais e tolhidas dos outros governos europeus (entre os quais o de Portugal) e da própria União Europeia;
  4. O inevitável “efeito de dominó” que a Independência da Catalunha vai provocar noutras regiões da Europa, que também aspiram à independência (entre outras: o País Basco, a Galiza, a Escócia, a Flandres, a Córsega, a Lombardia, o Tirol do Sul, as Ilhas Faroé...), o que não é necessariamente uma tendência negativa, permitindo encerrar o período histórico do domínio e do autoritarismo uniformizador (na maior parte dos casos) das “nações”, para fazer emergir uma nova paisagem territorial, um novo período histórico com territórios variados, nacionais e infranacionais, desafiando, no caso da Europa, um novo federalismo europeu, congregador, na diversidade, de novas territorialidades, mais expressivas das diversidades culturais e linguísticas e, portanto, mais ricas... E quiçá até mais próximo do ideal da Paz Perpétua que Kant enunciava no final do século XVIII, do que o rumo centralista (político e geográfico) a que o Projecto Europeu se tem subordinado ao longo das últimas décadas.

 


Bárbara Marques Ferreira é investigadora do SOCIUS/CSG, ISEG (Lisbon School of Economics & Management), Universidade de Lisboa e Doutoranda em Sociologia Económica e das Organizações (ISEG, UL)

Rogério Roque Amaro é Professor Associado do Departamento de Economia Política do ISCTE - IUL / Instituto Universitário de Lisboa

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