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Vicenç Navarro: “Europa como ponto de referência mundial desapareceu”

“A Europa ponto de referência mundial para aqueles que desejam viver em países democráticos e justos desapareceu”, defende o sociólogo e politólogo espanhol. No seu artigo, Navarro denuncia a enorme manipulação dos media espanhóis e alemães no que respeita à chantagem e ao ultimato a que foi sujeita a Grécia.

“As medidas impostas pelo establishment financeiro europeu (hegemonizado pelo alemão) - e os seus instrumentos políticos (a Troika, o Eurogrupo e o Conselho Europeu) - tentavam humilhar o povo que foi o único que, através do seu governo, se rebelou contra o austericídio forçado por aquele establishment financeiro”, escreve Vincenç Navarro num artigo de opinião publicado no Público espanhol.

“Esta humilhação apresentava-se ao público com satisfação e regozijo por parte dos maiores meios de informação, que atingiam o que alguns humoristas norte-americanos definiram sarcasticamente como um ‘orgasmo mediático’. Nunca tanto ódio se tinha expressado em tais meios com tanto prazer para quem o transmite, e tanta dor para quem o recebe”, acrescenta o sociólogo e politólogo espanhol.

Segundo Navarro, “em toda esta apresentação”, a “causa justa que o governo Syriza defendia” foi esquecida, bem como “alguns elementos chave para entender o ocorrido, incluindo o enorme desequilíbrio de forças em tal conflito, que atingiu níveis bélicos, conflito que era parte do existente entre as elites dirigentes na zona euro (que estão ao serviço do capital financeiro) e as suas classes populares”, um conflito que “Noam Chomsky definiu não como uma luta, senão como uma guerra de classes, que atingiu a sua máxima expressão na Grécia”.

“Os grandes meios de informação ao serviço dos interesses financeiros que os controlam ocultaram a maioria dos factos, ignorando, quando não ocultando, esta guerra de classes”, frisa, avançando que, “de um lado, estavam as instituições mais poderosas da zona euro, desejosas por destruir o Syriza, e assim matar o inimigo (e a expressão não é hiperbólica, pois esta era a sua intenção: destruir o inimigo e o Syriza, expulsando-o do governo)”, e, “do outro, estavam as classes populares da Grécia”.

Perante os “atos ilegais e canalhas (não há outra maneira de o definir), o povo grego realizou um enorme ato de valentia e coragem ao votar maioritariamente [no referendo]” contra “o establishment político-mediático europeu, sabendo o que isso poderia significar”, refere Vicenç Navarro.

O sociólogo e politólogo espanhol lembra que “a resposta das elites dirigentes na zona euro à rejeição das suas propostas foi aumentar ainda mais a sua hostilidade, exigindo medidas que convertiam a Grécia num ‘protectorado’ da Troika, recuperando a fórmula política imperial que tinha deixado de existir desde o período de descolonização que precedeu a II Guerra Mundial”.

No seu artigo, Navarro denuncia ainda “a grande falsidade de apresentar a ajuda aos bancos como um ato de solidariedade para com o povo grego”.

“Com um exercício de grande cinismo, estes Estados que tinham resgatado os bancos com dinheiro público à custa do bem-estar das suas classes populares, apresentavam agora o Syriza como o mau da fita por não querer pagar aos pensionistas europeus o dinheiro que os ditos pensionistas tinham emprestado aos pensionistas gregos (os quais, indicaram todos os meios, gozavam de pensões supostamente exuberantes)”, escreve.

Segundo Vicenç Navarro, “o objectivo desta propaganda era evitar que as classes populares dos países da zona euro se aliassem contra os seus próprios establishments, liderados pelo alemão”.

“É interessante sublinhar que os maiores aliados do governo alemão, na sua mão de ferro, foram os governos espanhol, português e irlandês, pois [como indica Varoufakis na sua entrevista no New Statesman (13.07.15)] odeiam o Syriza e queriam destruí-lo, temerosos de que forças políticas anti-austeridade que existem nos seus países beneficiassem de qualquer melhoria que o Syriza pudesse alcançar”, frisa.

Para Navarro, “o ocorrido nestes dias terá um enorme impacto na Eurozona”.

“A Europa nunca será a mesma a partir de agora. A Europa ponto de referência mundial para aqueles que desejam viver em países democráticos e justos, desapareceu”, defende, sublinhando que “a rejeição a esta Europa neoliberal, antidemocrática e reacionária, ao serviço do capital financeiro, está a estender-se ao longo do seu território, e criou-se uma nova situação que abre toda uma série de oportunidades”.

“Os factos mostraram com uma enorme clareza que o governo alemão da Sra. Merkel domina o Eurogrupo e dita as suas políticas, e fá-lo pensando única e exclusivamente nos seus interesses de classe. E digo de classe porque a classe trabalhadora alemã é uma das suas vítimas (merece destacar-se, por verdadeiro, o apoio valente das esquerdas alemãs, Die Linke, e dos sindicatos alemães às reivindicações antiausteridade gregas)”, refere ainda.

Segundo o sociólogo e politólogo espanhol, “hoje vemos o governo alemão, aliado com os establishments financeiros de cada país, como o centro de um poder que é profundamente antidemocrático e antissocial”.

“Existe uma aliança das elites dirigentes na zona euro, as castas que representam os interesses económicos e financeiros dominantes, que não tem limite na sua hostilidade para com as classes populares e o mundo de trabalho da cada país, incluindo o grego. É, repito, o que Noam Chomsky definiu acertadamente como a guerra de classes”, vinca.

“O que é mais urgente é que as classes populares, através de movimentos sociais e sindicais, e partidos políticos - estabeleçam laços de cooperação e associação para parar as medidas de austeridade, estabelecendo as bases para uma mudança profunda desta Europa reaccionária para outra Europa justa e democrática”, remata Navarro. 

Sobre o/a autor(a)

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
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Neste dossier:

A Europa da chantagem e o ultimato à Grécia

O acordo imposto em Bruxelas a Alexis Tsipras veio mostrar aos europeus que a democracia vale zero para quem toma decisões nos corredores do Eurogrupo. O povo grego vai continuar a pagar a permanência no euro com a receita recessiva prescrita pela Alemanha.

Dossier organizado por Luís Branco.

Democracia contra o colonialismo financeiro

Leia aqui a resolução aprovada na reunião da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda a 26 de julho sobre as consequências da cimeira da zona euro e a solidariedade com a luta contra a ocupação financeira da Grécia.

Vozes da direita juntam-se às críticas a Bruxelas

Em Portugal, não foram apenas os partidos à esquerda do PS a insurgirem-se contra a chantagem de Bruxelas e Berlim ao povo grego. Ex-governantes e comentadores políticos nos antípodas destes partidos também criticaram a “humilhação” que os líderes políticos europeus procuraram infligir ao governo da esquerda grega.

Leia aqui o "acordo" de Bruxelas (anotado por Varoufakis)

O ex-ministro das Finanças grego decidiu dar a conhecer as suas notas pessoais sobre o texto que serviu de acordo em Bruxelas e no qual, poucos dias depois, já quase ninguém diz acreditar.

Discurso de Zoe Konstantopoulou a favor do NÃO ao acordo imposto pelos credores

A presidente do Parlamento grego e uma das figuras mais populares do Syriza votou contra os dois pacotes de medidas prévias à negociação do terceiro memorando. No discurso de 15 de julho, Zoe Konstantopoulou diz não ter dúvidas de que "Alexis Tsipras foi chantageado com a sobrevivência do seu povo".

O “acordo” visto do interior do Syriza

Quando Alexis Tsipras regressou de Bruxelas com um acordo em que diz não acreditar e ter resultado da chantagem europeia, encontrou o partido dividido entre a estupefação e a revolta.

Habermas: “Governo alemão assumiu-se como chefe disciplinador da Europa”

Nesta entrevista ao Guardian, o filósofo alemão Jürgen Habermas fala sobre o acordo imposto à Grécia, considerando-o “um ato de punição de um governo de esquerda”. E defende que as medidas exigidas são uma “mistura tóxica de reformas” que irão “matar qualquer ímpeto de crescimento” na Grécia.

Stiglitz: Acordo sobre Grécia é "punitivo e uma estupidez cega”

Segundo o ex economista chefe do Banco Mundial e prémio Nobel da Economia, a Alemanha “não tem nenhum bom senso económico e nenhuma solidariedade”. Joseph Stiglitz  defendeu uma transformação radical da arquitectura financeira mundial. 

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Mélenchon: “Um acordo forçado que não devemos apoiar”

“O Governo de Alexis Tsipras resistiu de pé como nenhum outro na Europa. Devemos-lhe solidariedade”, contudo, “nada nos pode obrigar a participar na violência que lhe estão a infligir”, destacou Jean Luc Mélenchon poucos dias após a cimeira de Bruxelas.

O “plano Grexit” da Alemanha

O plano de Wolfgang Schäuble de expulsão da Grécia do euro, dado a conhecer na reunião do Eurogrupo de 11 de julho, impõe que o país entregue bens no valor de 50 mil milhões a um fundo para abater a dívida, sob a ameaça de mandar a Grécia para um “intervalo da zona euro” pelo menos até 2021. Aparentemente tem a cobertura de Angela Merkel e do vice-chanceler Sigmar Gabriel, líder do SPD.

Tsipras: “Ameaça de Grexit só acaba com a assinatura do programa”

No dia seguinte à assinatura do acordo, o primeiro-ministro grego recusou o cenário de eleições antecipadas, afirmando que assinou um acordo em que não acredita para evitar o desastre inscrito no plano dos “conservadores extremistas europeus”. Até à assinatura final do programa nenhum cenário está fechado, avisa.

Varoufakis abre o livro: “Você até tem razão, mas vamos esmagar-vos à mesma”

Na primeira entrevista após deixar o Ministério das Finanças, Varoufakis revela que defendeu a emissão de moeda alternativa como resposta à asfixia dos bancos, fala da “completa falta de escrúpulos democráticos por parte dos supostos defensores da democracia na Europa” e acusa os governos de Portugal e Espanha se serem “os mais enérgicos inimigos do nosso governo”.