Está aqui

A verdade e a impunidade

Aos 50 anos do golpe que derrubou o governo de João Goulart, a verdade sobre o que aconteceu no país começa, aos poucos, a se desenterrar. Por Eric Nepomuceno, Página/12
Tanque na rua: Para os militares, inclusive para os que não eram nascidos, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi uma revolução para impedir que um regime comunista se instalasse no Brasil. É mentira, e todo mundo sabe.

Na véspera dos cinquenta anos do golpe civil militar que derrubou o governo de João “Jango” Goulart e instaurou uma ditadura de 21 anos, há um pouco de tudo no Brasil. Há os nostálgicos, há os que se esquecem daqueles tempos maléficos e há os indiferentes, que acreditam que voltar ao passado é algo dispensável. E estes são a maioria – dona de um silêncio muito revelador sobre o pavor crónico dos brasileiros diante de um passado infame.

E há também os poucos – pouquíssimos – agentes do terrorismo de Estado que, por alguma razão, decidiram contar uma parte do que sabem. Dessa forma, a verdade começa, aos poucos, a desenterrar-se. Isso ocorre sob o respaldo de uma lei esdrúxula e infame de autoamnistia decretada pelos militares no início do declínio da ditadura, e que foi ratificada de forma tão surpreendente quanto abjetamente covarde pelo Supremo Tribunal Federal, há quatro anos.

Entre esses pouquíssimos que agora falam, um – o coronel aposentado do exército Paulo Malhães – o faz com uma tranquilidade assustadora. E ele tem razão: a amnistia protege-o agora de contar como arrancava os dentes e os dedos dos assassinados para impedir que os corpos fossem reconhecidos. Descreve com uma meticulosidade de jardineiro como abria a barriga dos cadáveres que logo seriam jogados nalgum rio, e a precisão empregada na hora de colocá-los em sacos de aniagem, calculando o peso exato das pedras para que flutuassem, sem aparecer na superfície. Admite placidamente sua participação em sessões de tortura e em assassinatos. Disse não saber quantos matou.

Quando perguntado sobre a violência sexual contra presas políticas, desconversou. “Se houve casos de abuso, foram um ou dois”, diz. Há dezenas e dezenas de relatos de mulheres que foram presas e abusadas. Malhães esclarece que, por ele, nenhuma: “Uma mulher subversiva, para mim, é um homem. Foram presas algumas mulheres lindas, mas não me atraíam. Eu as considerava e considero como um inimigo”.

Diz tudo isso na Comissão Nacional da Verdade instaurada por Dilma Rousseff, ela mesma uma ex-presa política que passou por todo tipo de tortura. É um dos únicos, na véspera do aniversário, que assume o que cometeu. Outros, como o coronel também aposentado Alberto Brilhante Ustra, famoso pela forma descontrolada com que torturava os presos, especialmente as mulheres, se dão ao luxo de fazer piadas prepotentes quando são convocados a depor diante da Comissão da Verdade.

Impressiona também a resistência pétrea de militares aposentados em sequer admitir que o que ocorreu em 1964 foi um golpe de Estado. Garantem que jamais houve ditadura: houve uma revolução, que logo se transformou num regime forte. No máximo, autoritário. Mas ditadura, não.

Talvez também por essa razão que Dilma Rousseff tenha proibido expressamente que se faça qualquer tipo de comemoração da data em instalações militares. A determinação da presidenta não atinge os militares aposentados, que têm os seus próprios clubes – é assim que eles os chamam: clubes – para comemorar a infâmia. Para os militares, inclusive para os que não eram nascidos, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi uma revolução para impedir que um regime comunista se instalasse no Brasil. É mentira, e todo mundo sabe.

E há uma coisa muito esclarecedora, muito simbólica. Na verdade, o golpe aconteceu em 1° de abril. Os golpistas retrocederam o calendário em 24 horas porque, no Brasil, o 1° de abril é o dia dos bobos. O dia da mentira.

Publicado na Carta Maior

(...)

Neste dossier:

50 anos do golpe militar no Brasil

O golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart no Brasil faz 50 anos. A ditadura militar instaurada em 1964 e endurecida em 1968 mergulharia o país no período mais sombrio da sua história recente. Dossier coordenado por Luis Leiria.

O golpe de 1964 e a instauração do regime militar

A falta de reação do governo de João Goulart e dos grupos que lhe davam apoio foi notável. Sem conseguir articular os militares legalistas e desistindo do confronto, Jango exilou-se no Uruguai. Por Celso Castro, artigo publicado no site do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas

Cronologia: os principais acontecimentos até ao golpe

A renúncia de Jânio Quadros, a instauração do parlamentarismo, a posse de João Goulart, o comício da Central do Brasil, a marcha da Família com Deus e pela Dignidade: antecedentes do golpe.

O golpe contrarrevolucionário de 1964: ontem como hoje

A discussão sobre o sentido profundo do golpe militar de 1964, quando cumpre meio século, constitui indiscutivelmente caminho seguro para o melhor entendimento dos dias atuais. Por Mário Maestri, Correio da Cidadania.

A verdade e a impunidade

Aos 50 anos do golpe que derrubou o governo de João Goulart, a verdade sobre o que aconteceu no país começa, aos poucos, a se desenterrar. Por Eric Nepomuceno, Página/12

O golpe de 1964 como uma ação de classe: uma polémica com certas tendências da historiografia brasileira

Um grande negócio para o grande capital, é como se pode sintetizar a ditadura de 1964 a partir de sua história. Mas as visões relativizadoras do golpe e da ditadura procuraram deslocar a sua explicação da problemática do capitalismo. Por Demian Melo

“AI-5 foi luz verde para a tortura”

Quatro anos depois do golpe militar, em dezembro de 1968, ocorreu o endurecimento da ditadura para enfrentar a crescente mobilização popular: é editado o Ato Institucional nº 5, que constitui uma espécie de “golpe dentro do golpe”. O jornalista Cid Benjamin, autor do livro “Gracias a la vida: Memórias de um militante”, descreve o contexto e analisa as consequências do AI-5. Por Vivian Virissimo, Brasil de Fato

Repressão e tortura na ditadura militar

Os métodos de tortura utilizados pelo regime militar eram tão cruéis que levavam à morte os torturados ou deixavam-nos loucos. Por Mateus Ramos, Adital

Brasil: Horrores da ditadura militar revelados por torturador

Aos 76 anos e sem mostrar o menor arrependimento, o coronel reformado Paulo Malhães admitiu que torturou, assassinou e desfigurou cadáveres de militantes numa “Casa da Morte” clandestina criada pelos órgãos da repressão em Petrópolis, Rio de Janeiro.

Um promotor brasileiro apresenta indícios do assassinato do presidente João Goulart no exílio

Presidente deposto pelo golpe militar de 1964 morreu em 1976, na Argentina, oficialmente de enfarte; mas suspeita-se que tenha sido vítima de envenenamento praticado no quadro da Operação Condor. Por Alejandro Rebossio, El País

Kennedy discutiu ação militar para derrubar governo brasileiro

“Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”, perguntou John Kennedy, 46 dias antes de ser assassinado, numa conversa com Lincoln Gordon, o embaixador americano no Brasil.  

Multinacionais alemãs beneficiaram-se do golpe de 1964

Mercedes, Volkswagen, Bayer, Siemens e Mannesman foram algumas das empresas que financiaram e se beneficiaram com a ditadura. Por Américo Gomes, da Comissão de Presos e Perseguidos Políticos da Ex-Convergência Socialista.

Os média que abraçaram a ditadura do Brasil não fazem “mea culpa”, fazem publicidade

A oposição feroz entre os grandes grupos de comunicação e a censura na ditadura militar é só a imagem que os grandes meios de comunicação querem projetar de si mesmos. Por Caio Hornstein, Carta Maior

As esquerdas e a ditadura militar brasileira

Brevíssimas reflexões sobre as esquerdas brasileiras, nos 21 anos de ditadura militar (1964-1985). Por Carlos Vianna.

Documentários e filmes sobre a ditadura brasileira

Veja uma seleção de documentários e filmes de ficção sobre o golpe e a ditadura militar brasileira.