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Venezuela: porque não “descem” das colinas?

O investigador Alejandro Velasco analisa o papel dos setores populares nos protestos na Venezuela, que já duram há cerca de 100 dias, com dezenas de mortos e centenas de feridos, no quadro de uma multiplicidade de crises. Entrevista exclusiva realizada por Pablo Stefanoni, junho 2017
Bairro 23 enero, Caracas, Venezuela
Bairro 23 enero, Caracas, Venezuela

Fala-se muito, e escreve-se, sobre a crise venezuelana, mas faltam alguns elementos. Entre eles está a questão dos setores populares: participam nos protestos? Qual é a sua relação com a oposição? E com o governo de Nicolás Maduro? Quem são e como operam os famosos “coletivos”? Alejandro Velasco, autor de Barrio Rising. Urban Popular Politics and the Making of Modern Venezuela (2015), responde a algumas destas interrogações.

 

Uma das perguntas que se levantam sobre a crise venezuelana é: que fatores sustentam Nicolás Maduro no poder? Parece estar sempre para cair e não cai, enquanto a crise se agrava. Qual é a sua interpretação?

 

Combinam-se vários elementos. Por um lado, está o aparelho estatal e a elite chavista. Na medida em que se vêm fechando espaços de manobra no plano interno e internacional, e têm que recorrer cada vez mais ao autoritarismo, as figuras centrais do governo vão entrincheirando-se ao se aperceberem de uma ameaça não só à sua permanência no poder, mas que é também verdadeiramente existencial. Para alguns, é uma questão de princípio: perante uma oposição encorajada e com amplo apoio no país e, em particular, no estrangeiro, o que está em jogo é o legado de Hugo Chávez, nomeadamente o avanço para o estado comunal. Para além da própria oposição, isto iria sempre significar uma batalha contra a própria Constituição de 1999 – redigida no início da presidência de Chávez -, e com setores internos ao chavismo menos ligados à corrente socialista do que à democracia participativa, base desta Carta. De modo que, para os setores mais radicais, este é de certa maneira um conflito bem-vindo ainda que muito demorado, talvez demasiado para ser vitorioso, mas de qualquer maneira lutarão. Para outros, no entanto, o interesse é mais prosaico: os laços de quadros fundamentais do chavismo com a corrupção desmedida – preferencialmente ligada ao dólar, mas nalguns casos ao narcotráfico – leva a que qualquer saída do poder implique a cadeia, na Venezuela ou no exterior. De modo que a crispação do conflito, vista em termos existenciais, tende a cerrar fileiras, ainda que por motivos muito diferentes.

Claro que vimos fissuras importantes no chavismo, com pessoas que se demarcam, como é o caso da Procuradora Geral Luisa Ortega Díaz. A procuradora assumiu uma posição muito crítica face aos ditames do Supremo Tribunal que invalidou a Assembleia Nacional, assim como face à convocação da Constituinte e à repressão dos protestos. Mas, por agora, não se viram quebras substanciais no chavismo. De certa maneira, mesmo as críticas da procuradora, que por mais duras que sejam têm pouco peso para além das palavras, beneficiam o governo no sentido em que demonstram alguma disposição para dar espaço a vozes diferentes dentro do aparelho estatal. Mas é possível que a pressão a que se viu sujeita, especialmente nos meios de comunicação do Estado, tenha maiores consequências ou que o seu exemplo inspire mais críticas e mesmo roturas essenciais. Por agora, no entanto, há poucos exemplos.

Por sua vez, a oposição – ainda que mais unida do que nos anos anteriores – peca, como noutros momentos, de excesso de confiança e de uma visão de curto prazo, com base na certeza de uma vitória iminente. Nesta oportunidade, esta dinâmica foi incentivada e – estou convencido – irresponsavelmente, por vozes como a do secretário geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, cujas declarações chegam a soar mais alto que as da própria oposição. A aproximação da oposição ao governo de Donald Trumo, a emergência de governos de direita no Brasil e na Argentina e as tentativas de diálogo pouco sinceras por parte do governo debilitam qualquer incentivo tendente a moderar posições e a procurar espaços de negociação. Perante este cenário, o entrincheiramento por parte do governo tem um espelho na atitude, também entrincheirada, da liderança da oposição, da qual de facto se alimenta.

Por último, está o “fator povo”. Como noutras ocasiões, as manifestações da oposição têm sido inúmeras. Mas ao contrário de outros momentos, estas conseguiram manter, dia após dia e durante muito tempo, níveis de participação importante. Também tendem a incorporar setores sociais mais variados do que no passado, ainda que seja exagerado dizer que há um verdadeiro cruzamento de classes. De facto, a brecha entre setores populares e a oposição mantém-se e manifesta-se nas ruas. A oposição atribui-a ao medo ou ao controle social dos bairros1, quer pelo Estado, na sua função de distribuidor de recursos – os Comités Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) – quer pelos chamados “coletivos”. Há algo disso, mas há uma sobreavaliação e creio que obedece antes a uma falta de capacidade autocrítica por parte de setores da oposição para entender por que, após dezoito anos e apesar da crise severa, ainda não conseguiram elaborar uma mensagem que ultrapasse a enorme desconfiança por parte de setores que não acreditam que a oposição reunida na MUD defenda os seus interesses no futuro. Perante esta enorme falha, é muito mais fácil atribuir a falta de participação massiva dos setores populares a um aparelho coercivo. Isto não remonta só à polarização na era chavista. A desconfiança por parte de setores populares estende-se para além disso, face a setores de classe média e alta cujo discurso sobre direitos humanos e democracia tende sempre a centrar-se nos direitos civis e políticos mais do que nos direitos económicos e sociais. Mas existe mesmo uma dívida moral da oposição ligada ao que foi a repressão, não só durante o golpe de 2002, mas também no Caracazo de 1989, para além de vários massacres nos anos 80 e 90 que põem em causa o real apego de setores antichavistas nos princípios democráticos que levantam. Tudo isto impede uma revolta massiva por parte de setores populares, o que tende a dar margem de manobra ao governo.

 

Uma pergunta ligada à descrição que faz dos setores populares: por que, finalmente, não “descem” das colinas, como costuma dizer-se, dadas as privações crescentes provocadas pelo descontrole económico?

 

Primeiro é importante compreender que tal como a oposição é heterogénea e dentro do chavismo há diferenças importantes, os setores populares são um ator complexo e por vezes contraditório. Dois exemplos em Caracas: em 2015, a paróquia 23 de Janeiro, vista como um bastião da revolução, votou maioritariamente na oposição, nas eleições parlamentares. E no município de Sucre, que abrange o maior bairro da América Latina – Petare – governa a oposição desde 2008, ainda que ali operem conselhos comunais muito próximos do governo. Como estes há muitos outros exemplos importantes de zonas populares com representação política mista, o que permite matizar as suas respostas perante a crise, que de facto são diversas.

Embora seja verdade que não tem havido uma participação massiva da parte dos setores mais afetados pela grave crise, não há dúvida que há protestos nos bairros. Tendem a ver-se cada vez mais saques, tanto de lojas comerciais como de camiões de abastecimento. Isto ocorre em particular no interior do país, onde o aparelho de segurança do Estado é mais ténue do que nas grandes cidades. Além disso, noticiam-se distúrbios na zona oeste de Caracas, a zona mais pobre, sempre que o sistema de abastecimento de comida aos bairros – os CLAP – tem falhas e atrasos.

Por várias razões, estes acontecimentos não costumam ser contabilizados como protestos. Por um lado, porque a oposição tem interesse em projetar uma imagem, sobretudo no exterior, de organização não violenta, centrada em reivindicações de natureza política: eleições gerais, liberdade para os presos políticos, recuperação de poderes para a Assembleia Nacional. São reivindicações facilmente entendidas internacionalmente como violação de direitos humanos, por se tratar de direitos civis e políticos, em vez de direitos económicos e sociais. Perante isto, embora seja claro que uma rebelião popular massiva e multissetorial seria bem-vinda para a oposição, também seria difícil situá-la e canalizá-la nos quadros discursivos e estratégicos que foram traçados. Os protestos estão latentes, mas ainda estão circunscritos às margens.

Depois, a ideia de bairros que “descem” está muito ligada ao que foi o Caracazo de 1989 e tende a limitar o que se imagina como protesto popular na Venezuela. Pensa-se em explosões sociais massivas e repentinas e não a conta-gotas, como vem acontecendo com setores populares identificados com as reivindicações da oposição. Atualmente, o tipo de protesto popular que se vê em setores populares costuma ter um caráter mais reivindicativo do que político-partidário. Mas os dados do Observatório Venezuelano da Conflitualidade Social mostram protestos contínuos e à escala nacional; protestos de moradores contra os efeitos da escassez, a inflação, o colapso dos serviços públicos, etc. Então, os bairros têm vindo a protestar e continuarão a fazê-lo.

Mas, e isto é fundamental, uma coisa é o protesto face ao governo e outra o protesto antigoverno. No passado recente, quando a oposição alcançou uma influência importante em setores populares, conseguiu-o centrando a sua mensagem precisamente naquelas reivindicações que têm eco nos bairros. Mas tende a perder terreno quando se afasta desse tipo de reivindicações e se concentra em questões de caráter mais político: mudança imediata de governo, fim da repressão e da violência do Estado, falta de representação política. Não é que estes sejam temas que não interessam aos setores populares, pelo contrário: foram precisamente estas as bases sobre as quais Chavez no seu discurso e, durante um tempo na prática, conseguiu o apoio destes setores outrora marginalizados pelas elites políticas e sociais. Mas atualmente, o foco na condenação do Estado pela sua repressão da oposição – sem dúvida correto, em princípio – é sentido nos bairros como privilégio de classe, uma vez que a violência e o abuso policial são o pão de cada dia nos setores populares. E perante este cenário vemos a retirada destes setores dos protestos pontuais, já que, por mais grave que seja a crise, não vão apostar numa mudança de governo sem nenhum sinal mais ou menos concreto sobre o que virá a seguir, e ainda por cima com pessoas no comando que durante décadas demonstraram pouca vontade de aproximação e ainda menos de compreensão das exigências dos setores populares; que não se esforçaram a entender por que Chávez conseguiu cativar os sonhos de tantos venezuelanos, o que não ocorreu por meras dádivas, por carecerem de sofisticação ou por terem sido privilegiados.

Isto é o que está subjacente ao que referi antes: a desconfiança. Sem dúvida que nos bairros o governo está não só debilitado como desprestigiado, mesmo entre os chavistas mais comprometidos, para quem o governo reage com timidez e incoerência perante o que consideram uma oposição violenta. Mas as sondagens demonstram que a oposição conta com uma clara maioria de cerca de 55% de apoio contra uns 15 a 20% do governo. Isto significa que, apesar da crise, uma parte da população, outrora simpatizante do chavismo e hoje dececionada com o governo, ainda não decidiu apoiar a oposição. E, certamente, vão pensar muito bem no quadro dos protestos que se tornam cada vez mais violentos, em particular em momentos como o atual em que os protestos são dirigidos para a mudança de governo sem uma ideia mais clara do futuro.

 

Até que ponto os CLAP e os coletivos funcionam como mecanismos de disciplinamento social?

 

Sem dúvida que existem esses mecanismos mas o seu impacto, em particular o dos chamados “coletivos”, está sobreavaliado no discurso, no imaginário da oposição e nos seus ecos no estrangeiro. Há uns dias atrás, por exemplo, um dirigente da oposição apelidou a Guarda Nacional de “coletivos”, enquanto que há algumas semanas se dizia, nos media internacionais, que os coletivos “controlam” 10% do país. Para além de se levantarem grandes interrogações sobre como se chega a esta percentagem e sobre o que se entende por “controle” - territorial, demográfico, operativo – este tipo de análise aponta para um sujeito homogéneo que não se ajusta à realidade. Ainda que partilhem caraterísticas – entre as quais a mais destacada, é o uso de armas de forma para-estatal – a verdade é que existe uma grande variedade entre grupos que se autodenominam “coletivos” ou assim são conhecidos. Na sua maioria, identificam-se com o governo, mas diferem tanto no nível de apoio como nos motivos por que o fazem, especialmente em momentos de conflito aberto como o atual.

Em termos muito gerais, podemos falar de três tipos de coletivos: um grupo é de longa data, com origens anteriores ao chavismo. Tanto na ideologia revolucionária como na disciplina tática estão muito bem formados e a sua experiência remonta às guerrilhas dos anos 60, das quais receberam inspiração. Também levam a cabo um trabalho social importante, além do da vigilância de gangues de delinquentes nos espaços onde operam, o que lhes dá legitimidade nos bairros, com exceções naturalmente. Estes grupos chocaram com o aparelho estatal chavista, mesmo com Chávez no seu tempo, cada vez que criticam a falta de compromisso ideológico da elite governamental no quadro da corrupção galopante, porque reivindicam autonomia em relação à ordem hierárquica do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e porque mantêm o controle sobre as armas que Chávez queria canalizar, sem êxito, para as forças armadas. De facto, embora outros componentes do aparelho repressivo do Estado tenham vínculos próximos com os coletivos, as forças armadas em geral veem-nos negativamente. Isso explica a dinâmica que os faz sair e ter ações em momentos de grande conflito: menos no apoio a Maduro do que na defesa do que consideram que é uma campanha militar implacável para neutralizá-los num contexto de transição.

Outro grupo surgiu entre 2007 e 2012, em pleno auge chavista. Têm como modelo o grupo anterior e desenvolvem certas funções similares de defesa em espaços muito reduzidos juntamente com um trabalho social onde agem, mas o seu posicionamento ideológico é muito mais comprometido com o “socialismo do século XXI”; isto é, muito mais próximos do chavismo e menos autónomos. Muitos são compostos por gente mais jovem do que os primeiros coletivos, com menos experiência de luta social nas suas comunidades, mas dispostos a desenvolvê-la no quadro do que foi o boom de recursos desses anos. À medida que estes recursos escassearam no governo Maduro (e mesmo antes), e por lhes faltar uma base ideológica forte e independente, alguns foram passando para atividades delinquentes, usando os contactos no governo, o seu armamento e o seu controle de espaços reduzidos.

Por último, estão o que podemos chamar coletivos disfarçados. Surgiram com a implementação da chamadas Operações para a Libertação do Povo (OLP), durante as quais forças especiais entram em bairros para desarticular supostos grupos criminosos e muitas vezes as suas ações terminam em matanças. No quadro destes OLP, setores da polícia têm tido contacto com coletivos em zonas onde operam, em princípio para tentar evitar confrontos, mas nesse contexto, foram também apropriando-se de táticas e ações de paravigilância que os coletivos utilizam, mas já com um fim claramente repressivo. Além disso, com as suas ações já não só de intimidação mas de choque e mesmo de intimidação em zonas opositoras, confirmam o imaginário divulgado sobre os coletivos: o monstro latente debaixo da cama. A partir do ciclo de protestos de 2014, começamos a ver estes grupos, agindo como dependentes do governo, ligados à nomenclatura, mas que agem como grupos civis armados, vestidos à civil e rodando em grupos motorizados.

Neste momento de crispação, os três grupos estão ativos, mas a sua função é mais de choque. De facto, se as elites chavistas se apegam ainda mais ao poder na medida em que o conflito se torna mais crítico, para os “coletivos” a dinâmica de vida ou morte é ainda mais férrea, ainda que difiram os motivos para atuarem. A confusão sobre quem são ou o que são verdadeiramente os coletivos permite prever que, num contexto de transição, as forças armadas – cuja relação com eles é por si tumultuosa, por que os veem como usurpadores das suas funções – terão amplo espaço de manobra para neutralizar qualquer coisa considerada sob esse nome. Isto, claro, tende a aprofundar ainda mais a sensação de defesa existencial por parte dos coletivos que, no entanto têm numerosas críticas a Maduro e e à cúpula chavista, tanto por corrupção como por falta de compromisso revolucionário.

Além disso, acho que pensar que milhares ou milhões de pessoas dos bairros não protestam, mesmo quando querem fazê-lo por estarem com medo é uma maneira de adiar, de novo, a pergunta sobre a razão de, há mais de três lustros, a oposição não conseguir motivar setores populares dececionados com o chavismo para que se arrisquem nas ruas, como o fizeram em muitas ocasiões. Assim, é mais fácil imaginar que deve ser por estupidez ou por medo que não se manifestam nas ruas massivamente. O medo, em particular, não foi um factor impeditivo noutros protestos anteriores.

Para entender isto basta, de novo, ver os níveis de protesto reivindicativo, muito altos, assim como o dia a dia de violência e repressão policial nos bairros, os quais não concitam nem uma mínima parte das críticas que Almagro, Human Rights Watch, Amnistia Internacional e inúmeras outras organizações reservam à oposição mobilizada nas ruas.

 

E os CLAP?

 

Os CLAP exercem essa função de controle social de maneira mais clara e com maior impacto, uma vez que cobrem muito mais território e, além disso, implicam ajuda que se torna mais crítica e necessária na medida em que a crise se agrava. Não é por acaso que houve um aumento significativo na aprovação de Maduro em princípio deste ano, que coincidiu com uma operação massiva e com êxito de distribuição dos CLAP. Mas é também um mecanismo de dois gumes. Quanto mais se criar uma expectativa de ajuda crítica e pontual dos CLAP, mais o governo precisa de lhe dar uma oportuna continuidade. Se não o fizer, torna-se possível e provável que este vínculo com o governo se desfaça e as pessoas saiam para as ruas em protesto. De facto, já há relatos de setores populares que protestam contra as falhas na distribuição dos CLAP, que se vão entrelaçando com os protestos de cunho mais cívico e político. Se as falhas persistirem e cair a expectativa de ajuda, esse controle que os CLAP vêm exercendo esfumar-se-á.

 

Que perspetivas imagina para a conjuntura venezuelana atual?

 

Tudo aponta para um cenário de maior confrontação, o que é um traço marcante na evolução da situação recente da Venezuela. Comenta-se até que o insólito é que a tensão social e política não tenha atingido maiores níveis, e mesmo uma guerra civil, dada a intensidade da polarização, do protesto e do conflito que o país tem vivido nas últimas duas décadas (e mesmo antes), ao que se junta o grande número de armas nas ruas e os altíssimos níveis de violência criminosa. A verdade é que noutras situações em que se falou do tudo ou nada, do fim do mundo, de um desenlace fatal num quadro de forças cerrado – como em 2002, 2007 ou 2014 – a Venezuela e a sua gente, apesar de tudo, soube como travar o caminho para o abismo.

Hoje estamos numa conjuntura muito diferente de situações anteriores de crispação, protesto e violência. O governo não só está débil quanto ao apoio popular, mas também perante um panorama geopolítico completamente adverso e com muitos dos seus quadros envolvidos na corrupção, o que reduz a possibilidade de imunidade num contexto de transição. O governo está encurralado e sem interesse em negociar de boa-fé, pois o que está em jogo é o todo. Por isso usa todas as peças que controla no aparelho institucional para tentar travar o colapso total, aceitando os custos de legitimidade que isso implica tanto a nível interno como a nível internacional. Claro, da parte da oposição, com mais apoio do que nunca dentro e fora da Venezuela, também não há qualquer vontade de negociar. Primeiro por questões de princípio – do tipo “a democracia não se negoceia”, embora o que entendem por democracia esteja em causa, mas sobretudo por sentirem que estão próximos da vitória final.

No entanto, também é certo, mesmo que seja difícil aceitá-lo, que, como mencionámos antes, nem a oposição nem o governo têm um poder esmagador para saírem vitoriosos. Por isso, estagnam numa brutal luta de trincheiras sem um resultado claro. O governo joga no desgaste da oposição. A oposição espera uma rotura decisiva dentro do governo – por exemplo de pedras chave, especialmente nas forças armadas – e no aumento dos protestos em setores populares que levem à repressão, tal como vem acontecendo com os protestos mais convencionalmente associados com a oposição. Isso tiraria muita credibilidade em setores que mesmo que tenham sérias críticas e desilusão ainda não se decidiram a apostar em definitivo numa alternativa de governo da oposição.

O trunfo decisivo é a Força Armada Nacional Bolivariana. Cada vez mais é evidente e conhecido, não só à escala internacional como na própria Venezuela, sobretudo entre aqueles que simpatizam ou simpatizaram com o governo, que as suas cúpulas estão mergulhadas na corrupção, especialmente no tráfico de alimentos e divisas, o que afeta de maneira mais direta setores populares. Mas, ao contrário das elites chavistas, os militares sabem que são uma moeda de troca precisamente por controlarem as armas do Estado e estarem na posição de em dado momento dirigirem as armas em função de uma “pacificação” de setores, por exemplo os coletivos, que se oponham de forma violenta a uma transição. Na verdade, a oposição mantém laços com a hierarquia militar e pede publicamente que se manifeste abertamente contra o governo. E pode ser que o faça, mas para além do paradoxo de uma oposição que durante anos criticou a componente militar por se sobrepor à civil, quem sofrerá as consequências serão os setores populares de que tanto se fala. Vale a pena recordar as palavras do então recentemente eleito presidente Carlos Andrés Pérez2, em vésperas do que seria o Caracazo de 1989, a um dirigente da Ação Democrática: “Quando o exército sai à rua é para matar gente”. Portanto, não vale a pena falar de anjos e demónios na Venezuela. Quem ontem clamava pelos direitos humanos hoje viola-os, e vice-versa. E o preço é sempre pago de forma muito marcante por esses bairros de que tanto se fala e aos quais tão pouco se escuta e menos ainda se os entende. Isto é, em resumo, o nó e o tamanho da nossa crise.

Entrevista a Alejandro Velasco, historiador e professor na Universidade de Nova Iorque (NYU) e também editor executivo de Nacla Report on the Americas, realizada por Pablo Stefanoni e publicada em nuso.org. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


1 Bairro (barrio) na Venezuela tem o significado de bairro pobre das cidades (favela). Os bairros de classe média e/ou alta denominam-se urbanización (ver wikipedia.es)

2 Carlos Andrés Pérez foi Presidente da República da Venezuela em dois períodos: 1974-1979 . 1989-1993. (ver wikipedia)

(...)

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