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Um visionário

É PRECISO RELER IVAN ILLICH
Nos anos 70, o austríaco Ivan Illich era muito lido e discutido. As suas obras influenciavam todos os que queriam pensar a escola e problematizar a educação. Hoje, está quase completamente esquecido. E, no entanto, as suas ideias são, em muitos aspectos, mais actuais do que nunca.
Para uma conversa sobre o legado e a actualidade de Ivan Illich, a revista Aprender ao Longo da Vida reuniu os professores Rui Canário, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, e Olga Pombo, da Faculdade de Ciências da mesma Universidade.

Um visionário que é preciso reler

 Ivan Illich

Publicado originalmente na revista Aprender ao Longo da Vida

Olga Pombo: O primeiro traço que gostava de sublinhar em Ivan Illich é a questão da utopia. Há duas espécies de utopias e Illich pertence à espécie mais bonita. A primeira espécie é constituída por aquelas utopias que conjugam os verbos no futuro: "será", "amanhã será." Estas utopias têm por base a crença no progresso e é a partir dessa crença que idealizam a sociedade futura. Ivan Illich pertence ao segundo grupo, que eu aprecio mais, aquele que conjuga os verbos no imperfeito do condicional. Aqui, não se diz "será" mas sim: "poderia ter sido", "poderia vir a ser". Em vez de partir da crença num desenvolvimento mais ou menos linear, Illich tem aquilo a que eu chamaria uma apurada sensibilidade à alteridade. As coisas são assim mas poderiam ter sido outras, ou podem ainda vir a ser de outra maneira. Daí a sua capacidade para, ao olhar o mundo, descolar rapidamente do real para o possível. Isto é assim mas não é inevitável que assim seja. Nada na história justifica que assim tivesse sido. E não é necessário que assim continue a ser. Podemos sempre admitir a possibilidade de que as coisas possam ser de outra maneira.

Neste ponto, Illich está ao lado de um outro grande utopista, Jean-Jacques Rousseau. Rousseau antecipou a Revolução Francesa. Ivan Illich construiu a sua vida como uma militância que, muitas vezes, tocou as raias da missão enquadrada religiosamente. Actividade militante essa que teve efeitos interessantes na América do Sul e um pouco por todo o mundo. Illich acabou por ser uma voz escutada e não apenas um solitário a pregar no deserto. No meu tempo, ele tinha imenso impacto. É certo que hoje é desconhecido. Mas, hoje, só se conhece aquilo que acontece hoje. Há uma memória muito curta. Estamos num período muito grave, de perda da memória.

Rui Canário: A primeira coisa que gostava de dizer é que o Ivan Illich, ao contrário do que algumas pessoas pensam, não terminou a sua intervenção nos anos 70. Nem a intervenção nem a escrita. Ele continuou a escrever e a intervir até ao fim do século. Faleceu há pouco tempo [2002], e não é por ter deixado de intervir que foi esquecido. Há aqui realmente um problema de memória, mas há um esquecimento selectivo.

Há tempos, tive a curiosidade de verificar que em alguns grandes congressos de educação em Portugal, com centenas de comunicações e conferências, o Ivan Illich não era citado uma única vez. Em contrapartida, há autores que se tornaram conhecidos também nos anos 70, como o Paulo Freire ou um autor completamente diferente, o Bourdieu, que continuam a ser abundantemente citados. Há aqui alguma coisa que tem a ver com o próprio pensamento do Illich, que se situou sempre em contracorrente.

Em Portugal, os livros dele foram editados nos anos 70, no período do Prec e imediatamente a seguir, e o ambiente que se vivia era o menos propício possível a receber e analisar de forma construtiva as propostas de Ivan Illich, porque estavam em contracorrente com o que era dominante. O marxismo e o pensamento de Paulo Freire aparecem muito mais em consonância com o espírito da época. Acho que, de facto, ele foi ignorado, e hoje merece ser relido.

Reli nos últimos tempos textos que só tinha lido nos anos 70 e outros que entretanto foram publicados. A impressão com que fico é que ele antecipa, com grande lucidez, problemas que hoje estão em cima da mesa. É possível, do ponto de vista da Sociologia da Educação, mostrar que há uma certa convergência entre ideias que ele enunciou e que apareciam - e ainda hoje aparecem - como ideias de um visionário, mas que estão totalmente em convergência com a investigação empírica e com os problemas com que nos defrontamos hoje nos sistemas escolares e na educação em geral. Acho que ele é bastante actual e deve ser relido e recuperado. Esta tendência de limitar as bibliografias aos últimos três anos conduz a deitar património pela borda fora.

Olga Pombo: Eu acrescentaria uma outra razão para esse "esquecimento selectivo" de que Illich está a ser alvo: o facto de ele não ter uma utopia normativa. Illich nunca diz como é que as coisas devem ser, não faz parte dessa praga terrível que consiste em indicar logo o caminho, em fornecer imediatamente a solução. A normatividade trava a possibilidade de as pessoas inventarem por si próprias, impede-as de se apropriarem de forma criativa daquilo que aprendem e vivem. Talvez por isso Illich seja hoje menos lido do que Paulo Freire, que eu também aprecio, mas que, apesar de tudo, não deixa de dizer como se deve fazer. Quanto a Illich, ele escreve explicitamente: "eu não proponho uma utopia normativa". Por outras palavras, Illich não é um pedagogo. Se virmos bem, ele nunca diz como se deve fazer. O que procura, isso sim, é determinar como poderia ser de outra maneira. O seu objectivo consiste em inventar condições formais para que as coisas pudessem ser de outra maneira. E isto é talvez o que explica por que é que as pessoas não dão tanta atenção ao que ele diz. Se desse um receituário, seria certamente mais ouvido.

Rui Canário: Acho que ele é muito, muito diferente de Paulo Freire, e muito mais profundo nas críticas que faz. Paulo Freire tem um pensamento construído sem pôr em causa os princípios que norteiam todo o pensamento da modernidade: a crença absoluta no papel da escola, no progresso, numa certa ideia de ciência, numa certa ideia normativa da mudança social, a ideia do Estado, do progresso... Enquanto que Illich põe tudo isto em causa. Illich diz que a escola é uma vaca sagrada da civilização ocidental. Já o pensamento de Paulo Freire situa-se dentro dos limites do escolar, não critica o escolar nem o que lhe está agregado, o papel do Estado, o papel que a escola e a escolarização têm, de acordo com uma certa ideia de progresso.

Illich coloca uma coisa que, a meu ver, era difícil de compreender também na época. Ele critica ao mesmo tempo o capitalismo, na sua forma ocidentalizada, e o capitalismo de Estado. E isso era incompreensível no Portugal de 74, e não é esse o ponto de vista de Paulo Freire.

Do ponto de vista humano, para uma pessoa que vive do seu trabalho, é relativamente indiferente que trabalhe para o Estado ou para o Henry Ford. As relações sociais podem ser exactamente idênticas e, nesse aspecto, o Illich tem uma crítica muito mais profunda. Há uma questão que a Professora Olga Pombo referiu que me parece extremamente importante e à qual sou particularmente sensível: a ideia de a autonomia e a criatividade humanas poderem ser postas em causa e contrariadas pela crença também um pouco cega nas virtudes da técnica da ciência e no poder profissional.

Olga Pombo: Sem dúvida. A pedagogia pretende resolver os problemas do ensino ao nível das técnicas de comunicação entre professor e aluno. Como se as coisas apenas se passassem, ou no interior da sala de aula, ou naquilo a que se chama "a relação professor/aluno". Ora, uma das vantagens de Ivan Illich é que ele coloca a escola numa perspectiva eminentemente política. É por isso que ela lhe aparece imediatamente como uma instituição só pensável ao lado de outras, nomeadamente, a saúde, os transportes, a energia, etc. É tão flagrante, tão interessante essa contiguidade que Illich estabelece entre a escola e a saúde, a manufactura, a indústria, a fábrica, que eu senti necessidade de ir verificar a data de Surveiller et Punir, de Michel Foucault. Há uma proximidade muito curiosa entre as duas obras. Em Surveiller et Punir, de 1975, Foucault faz um paralelo muito forte entre a escola, o hospital, a caserna, a fábrica e o asilo que define como instituições de encarceramento e normalização. Curiosamente, esta mesma análise, profundamente política, crítica e arrasadora de uma série de valores indiscutidos nas nossas sociedades, estava feita por Ivan Illich um ano antes. Claro que há outros autores que pertencem ao mesmo universo. Claro que Bourdieux também é dessa geração. Mas a voz de Illich é uma voz independente e este facto, assim como o seu combate sem tréguas contra os limites teóricos da pedagogia, é um mérito muito grande da sua obra. Ele escava fundo, não se limita a olhar para o que se passa no interior da sala de aula. A sala de aula tem que ser pensada no enquadramento mais amplo de uma instituição que é a escola; e a escola, por seu lado, tem de ser olhada em articulação com outras instituições. E isso ele faz muito bem.

Rui Canário:Há um conceito na obra do Ivan Illich que é confirmado pelos factos. É o conceito de contra-produtividade. Hoje, claramente, os sistemas escolares são contra-produtivos. Fabricam uma infância anormal, fabricam problemas de aprendizagem, fabricam desfuncionalidades, subordinam a educação à produtividade e àquilo que ele critica em termos de desenvolvimento. Illich pensa globalmente a educação, tendo como referência uma outra sociedade baseada naquilo que ele chama a convivialidade, ou convivencialidade, e que é uma outra referência. Nesse sentido, ele recupera o debate, a dimensão política e filosófica da educação como questões centrais. Paulo Freire também faz isso, só que produz uma crítica muito mais interna à escola e ao Estado como instituição, presumo que, para ele, se os objectivos forem outros, é possível pôr essas instituições ao serviço doutras causas.

Ora a esse respeito, a meu ver, Ivan Illich tem uma visão mais profunda e mais lúcida. Hoje, independentemente de sermos admiradores ou não de Illich e críticos ou não de Bourdieu ou de Paulo Freire, aquilo que se verifica é que a escolarização, a escola enquanto forma escolar, como sistema escolar, como forma, como instituição é uma coisa obsoleta. Aquilo que Illich claramente intui, sobretudo no livro Educação sem Escola, são as potencialidades, a importância da autoformação, das situações educativas não-formais, da relação muito directa entre a socialização e a aprendizagem, a valorização daquilo que as pessoas sabem como ponto de partida para construírem a sua autonomia - tudo contrário àquilo que faz a escola.

Quando olhamos hoje para os diagnósticos das políticas educativas e os remédios que são propostos, a sensação que se tem é que o problema é sempre agravado pelas soluções. Nesse sentido, em 75 era mais fácil dizer que ele era um visionário. Hoje em dia parece-me que mesmo alguns aspectos das políticas oficiais estão a reconhecer implicitamente as ideias da formação em contexto de trabalho, da formação no quotidiano, do papel da educação não-formal, das tais redes informais para pôr ao serviço doutras modalidades de relação que estão nos escritos de Illich.

Olga Pombo: A meu ver, Ivan Illich faz uma coisa muito importante que é separar ensino e educação. Em geral, quando se fala de escola, confundem-se sistematicamente as funções de ensino e de educação. Pensa-se que essas funções têm de estar sempre associadas. Ora, Illich distingue claramente na escola três tipos de funções: a função desempenhada por aqueles que designa por "administradores", as pessoas que fariam funcionar as redes. Depois, as funções do pedagogo, a quem Illich chama "conselheiro pedagogo", alguém que encaminha, que orienta, que prolonga o pai e a mãe, isto é, alguém que dilata a acção educativa da família. Em terceiro lugar, o professor. Há momentos neste livrinho minúsculo mas muito interessante em que Illich é muito claro sobre o que é o professor: "é um ser humano possuidor de uma ciência e pronto a auxiliar o recém-chegado no limiar da sua aventura educativa". Claro está que Illich deveria ser mais preciso e dizer: "no limiar da sua aventura intelectual". De qualquer forma, ele tem clara consciência da especificidade das funções do professor. Enquanto que o administrador e o pedagogo são profissionais, com as suas técnicas, as suas metodologias, os seus procedimentos específicos, o professor é o tal ser humano possuidor de uma ciência e disponível para auxiliar os recém-chegados nos difíceis caminhos da exploração intelectual. Ou seja, Illich sabe muito bem que o professor não é, nem tem que ser, o pedagogo. Ele não está lá para "orientar" o estudante, para prolongar a acção educativa dos pais. Ele está lá para transmitir - ou para contribuir, para facilitar, ou simplesmente para apoiar - o caminho que o aluno vai ter que percorrer na sua aprendizagem do mundo. E o apoio a esse caminho de desbravamento intelectual nada tem a ver com a veiculação de valores morais, nem com a imposição de regras de conduta. Uma coisa é o ensino, outra a educação, outra o trabalho dos administradores escolares.

Infelizmente, hoje baralha-se tudo isto. Cada vez mais, se atribuem aos professores funções administrativas, de gestão, de direcção de turma - funções que Illich diria que cabem aos administradores - e funções pedagógicas, de orientação educativa. O que daqui resulta é que o professor fica perdido, sem tempo e sem motivação para exercer as suas funções de professor. Não quero com isto dizer que o administrador ou o pedagogo não devam ter um lugar na escola. O que pretendo é que não podemos confundir essas figuras com o professor. Enquanto continuarmos a fazer essa confusão, não percebemos nada da escola e do ensino que nela pode ter lugar. Ivan Illich percebeu isso muito bem.

Rui Canário: Acho que o Illich nos ajuda numa questão decisiva: nós temos um défice de crítica e de lucidez relativamente aos problemas que vivemos. Todos os contributos nesse sentido são, a meu ver, decisivos. Do contributo dele, eu retiro a ideia de que faz mais sentido orientar as nossas escolhas educativas para processos que vão no sentido da desescolarização, do que o contrário.

E é a isso que nós assistimos. Podemos interrogar algumas medidas que as pessoas continuam a defender como soluções para os problemas actuais. Uma delas continua a ser a escolarização, outra é o crescimento, o desenvolvimento económico, relativamente ao qual Illich mostra ser uma das raízes fundamentais dos nossos problemas, não funcionando, portanto, como solução. Se aprendermos com ele a pôr em causa algumas das ideias recebidas e que permanecem sem ser criticadas, já é uma contribuição importante.

Olga Pombo: Estou de acordo quando diz que Ivan Illich nos pode ajudar a fazer a crítica da escola. Mas, a meu ver, aquilo que ele critica na escola é ela ser um aparelho de manipulação e de encarceramento. Quando Illich pensa alternativas, quando imagina que as coisas poderiam ser de outra maneira, não esquece a transmissão do conhecimento. Pelo contrário, é nela que se concentra particularmente. Só que essa transmissão aparece pura, separada daquilo que é a manipulação das vontades. De facto, aquilo que é terrível na escola não é ela ser um veículo de transmissão do conhecimento. O que é terrível é que essa transmissão seja acompanhada pela sujeição das autonomias. O que é tremendo é que o estudante tenha que aceitar perder alguma coisa para poder adquirir um diploma. O que a desescolarização de Illich vem dizer, não é que não interessa adquirir conhecimento mas sim que é possível adquiri-lo sem perda de autonomia. O que Illich pretende mostrar é que é possível promover a aquisição de conhecimentos sem que, quem aprende, tenha que pagar o preço que os nossos sistemas escolares exigem, o preço da subordinação das vontades.

Rui Canário: A escola, tal como nós a conhecemos e é criticada por Ivan Illich, é um fenómeno histórico relativamente recente. Estamos prisioneiros, de alguma maneira, de um conjunto de conceitos e maneiras de pensar que o Ivan Illich vem criticar de forma radical. Julgo que, na época, foi pouco percebido. Agora está na altura de o reler e de repensar os problemas que temos, confrontá-los outra vez com as propostas críticas que faz, que são extremamente importantes.

Olga Pombo: E actuais. Realmente, Illich pode ser considerado um visionário quando fala das redes enquanto elementos de disponibilização dos objectos educativos. Por exemplo: uma criança que vive numa aldeia não pode ir a um museu porque na terra dela não há museu algum e porque o pai não tem automóvel para ir à grande cidade. Mas hoje, essa criança tem acesso, através da Internet, não propriamente ao museu mas a uma viagem virtual ao museu. E isso Ivan Illich previu. E não é só o museu, é a biblioteca, são os laboratórios, etc. Estranhamente, Illich nunca fala da Internet. Está sempre a falar de algo que diz estar a imaginar mas que, de facto, nesse momento, estava a dar os primeiros passos. E não é crível que ele não tivesse conhecimento disso!

Ainda em relação às redes, Illich diz também uma outra coisa muito importante: é que a rede não anula a função do professor. Digamos que Illich arrasa a escola enquanto instituição educativa mas, ao afirmar o papel fundamental do professor, está a reconhecer o destino cognitivo da escola. Não é por acaso que este livrinho - "Desescolarizar a Sociedade" - termina com um elogio à figura do professor. Illich chega mesmo a falar da relação de amor que se estabelece entre o professor e o aluno. E, aqui, mais uma vez a sua análise é muito fina. Essa relação de amor resulta, não das boas relações de comunicação que se podem estabelecer entre professor e aluno, mas do facto de o aluno reconhecer que o professor o ajudou a conhecer o mundo. Ora, não há Internet alguma que cumpra essa função. A Internet oferece informação, não oferece conhecimento. Há muita gente que advoga o fim próximo da profissão docente porque não consegue perceber a enorme diferença que há entre informação (que os novos meios de comunicação permitem obter com grande eficácia e velocidade) e conhecimento (que passa pelo desenvolvimento de capacidades cartográficas e integradoras que só o professor pode ajudar a adquirir).

Rui Canário: O que o Illich tem em comum com Paulo Freire é o reconhecimento de que todo o ser humano é capaz de construir a aventura intelectual. Esse é um distintivo da humanidade: a capacidade de criar, pôr perguntas, ser curioso. Isso é comum às pessoas mais escolarizadas ou aos camponeses analfabetos com quem trabalhava Paulo Freire, e que o Illich visitou. Desse ponto de vista, há a possibilidade de haver uma reversibilidade de papéis educativos entre as pessoas. Todos nós, em diferentes momentos, desempenhamos o papel de ajudar outros a construir a sua aventura intelectual e beneficiamos da interacção com eles.

Do ponto de vista da escola tradicional, essa relação é irreversível, há alguém que sabe. É a crítica que Paulo Freire faz à educação "bancária". Mas o Ivan Illich vai além disso, coloca o problema da autonomia humana e liga-a às relações sociais e às ferramentas. Porque a mesma ferramenta, no caso da Internet, pode ter as mais diversas utilizações e também pode ter efeitos perversos. Neste sentido é que este livro sobre a convivencialidade é importante, porque aquilo que pode dar um ou outro sentido ao uso das ferramentas é a dimensão política, são as escolhas que nós somos capazes de fazer em sociedade e a maneira como nos organizamos. Há uma visão profundamente humanista, mas que se distingue do humanismo presente na educação de adultos tal como é impulsionada pela Unesco: um humanismo baseado na ideia do crescimento económico, do desenvolvimento, do acreditar no progresso, do papel dos profissionais e que é, exactamente, tudo aquilo que o Illich profundamente critica.

Olga Pombo:A definição que Illich dá de professor é muito bonita: o professor é aquele sabe e que tem vontade de esclarecer. Ou seja, para ser professor são precisas duas condições fundamentais: saber e ter vontade de esclarecer. Há maus professores que até podem saber muito mas não têm vontade de esclarecer. E há pessoas que, mesmo com muita vontade de esclarecer, nunca serão professores porque não têm nada para ensinar. Agora, se eu estiver ao pé de um sapateiro que me está alegremente a mostrar como se faz um sapato, eu posso aprender com ele. Nesse momento ele é meu professor. Da mesma maneira, o professor pode aprender com o aluno... Os papéis podem inverter-se. Hoje cada vez mais é assim, até porque já ninguém detém saberes universais. De repente, o aluno pode transformar-se no professor se possuir, não só um saber específico para ensinar, como o gosto, o amor pela transmissão, pela facilitação da aprendizagem do outro.

Rui Canário:Queria voltar àquele conceito da contra-produtividade. Há aspectos que o Illich não nega em absoluto, diz é que, a partir de um certo limiar, eles se tornam contra-produtivos. Portanto, o facto de eu utilizar transportes cada vez mais rápidos e mais consumidores de energia acaba por conduzir a um limiar que é contra-produtivo - criam-se mais problemas do que se resolvem. Ele defende um socialismo baseado na bicicleta, e isto está também muito ligado à época, significa que há instituições que podem ser vantajosas; mas a partir de certos limites tornam-se perversas.

Um dos exemplos mais evidentes do que pode ser este limiar contra-produtivo é a escolarização da infância, na qual não vejo qualquer vantagem. Ainda recentemente visitei instituições de acolhimento de crianças em idade anterior à escola, onde elas são divididas de acordo com as dificuldades de aprendizagem. Isto é claramente um efeito perverso. Foi isto que se fez em Portugal e também noutros países: estender a escolarização cada vez mais para trás. Escolarizar modalidades educativas que não eram escolarizadas e não deixavam por isso de ser interessantes.

Acho que o Ivan Illich é uma referência para pensar estas questões. Aliás, não há dúvida, todas as pessoas que trabalham em ciências da educação e na formação de professores e da pedagogia, não podem deixar de pensar como é possível que o desenvolvimento desse campo, em vez de se traduzir em melhorias evidentes, se transforme muitas vezes, na origem de problemas.

Olga Pombo: Estou inteiramente de acordo consigo. As crianças foram convidadas a ir mais cedo para a escola porque os pais tiveram que ir trabalhar. A essa "escola", chamava-se "jardim-de-infância". Agora é o "pré-primário". É uma expressão engraçadíssima, porque é primário mas é antes do primário. Logo aqui se dá conta da dificuldade de pensar esses espaços, que são espaços de encarceramento. Encarceramento benévolo, é certo, mas, apesar de tudo, encarceramento. A sua função é guardar as crianças, alimentá-las, mantê-las disciplinadas, ou seja, contrariar aquilo que é o espontâneo, o movimento da vida, da irrequietude, da procura. A criança é irrequieta porque quer conhecer o mundo e isso é contrariado por um esquema benévolo que aparenta ser familiar mas não é. Se olharmos para uma sala de uma dessas instituições infantis, as crianças estão lá num modelo muito próximo dos cânones de uma escola secundária ou primária. Começam aliás a ser ensinadas cada vez mais cedo. E isto porque a chamada "educadora de infância" vai, pouco a pouco, assumindo o papel da professora. É que, a autoridade educativa é dos pais. E a "educadora infantil", para conseguir ter alguma autoridade sem ser autoritária, tem que se apresentar, face às crianças, como representante de algum saber. Por outro lado, os próprios pais estão interessados em que a educadora de infância tenha alguma autoridade. Se lhe vão entregar diariamente o cuidado dos seus filhos, durante horas seguidas, alguma autoridade ela tem de ter. ´

E, assim, temos uma situação terrível: as nossas crianças estão a ser entregues a pais artificiais que estabelecem com elas relações falsas que, por isso, não podem ser senão de deterioração educativa. O mais fácil seria prolongar a estadia das crianças na família, no bairro, na rua. Não estou a falar da imagem bucólica de uma aldeia de Trás-os-Montes onde as crianças andassem ainda a brincar sobre a protecção dos adultos. Estou a falar daquilo a que Ivan Illich chama convivencialidade.

Rui Canário:Em Portugal, as poucas experiências inovadoras no domínio do atendimento à infância vão justamente no sentido de haver pessoas que desempenham um papel educativo junto das crianças e das famílias, mas não no pressuposto de que os pais e as mães são incompetentes. Alguns dos projectos mais interessantes são de qualificação das próprias famílias, das próprias comunidades para proporcionar um melhor atendimento às crianças. O problema central é sempre quando o profissional reduz a capacidade de autonomia que cada um de nós deverá ter.

Olga Pombo:Sou a favor de uma convivência democrática nas escolas, sem discursos sobre o que é a democracia. Nada de moralizações. Sou absolutamente contra a Educação para a Cidadania. Parece-me um produto perverso da lógica de institucionalização. Já nem somos senhores da nossa cidadania! Até já isso nos querem ensinar. É terrível, mas é assim.

E tenho muita pena de ver os esforços que os Estado fazem, os milhões e milhões de euros que gastam para fazer o alargamento da rede do pré-escolar. Estou convencida que, se fizessem bem as contas, mais valia deixarem as crianças em casa, ou no bairro, ou na junta de freguesia, ou nas associações que se criariam com esse objectivo, associações públicas de cidadãos, de pais, de avós, de reformados. As pessoas dirão: "que lunática é aquela senhora". De facto, neste ponto, não posso deixar de estar de acordo com a ideia de Illich da convivencialidade. As crianças seriam com certeza mais felizes e mais capazes de, mais tarde, ter uma participação política mais interessante do que com aulas de educação para a cidadania.

Rui Canário:Acho que o essencial da actividade educativa, no sentido emancipatório e da cidadania, é dar a palavra às pessoas. É o contrário de as pessoas serem domesticadas por instituições ou ficarem na dependência de profissionais. A autonomia está no centro da ideia de uma sociedade convivencial, que deixa de subordinar a actividade humana à ideia de produzir mais bens, de ter riquezas, de ter lucros, da produção pela produção. Estes são conceitos centrais do Ivan Illich e ele está em contracorrente com tudo.

Olga Pombo:É curioso que, nesse ponto, Ivan Illich hesita: umas vezes diz que o próprio sistema de desescolarização é uma via para a construção de uma sociedade convivencial, outras vezes diz que, para que o regime de desescolarização fosse possível, era necessário que já tivéssemos uma sociedade convivencial. Por um lado, diz "temos primeiro que construir uma sociedade em que o acto pessoal reencontre um valor mais alto que o fabrico de coisas e a manipulação dos seres". Mas, depois, diz o contrário: "as instituições educativas que eu pretenderia esboçar pertencem a uma sociedade que ainda não existe, mas que elas contribuiriam para formar". Tão depressa a escola contribui para transformar a política, como é necessário alterar a política para podermos ter uma escola diferente.

Rui Canário: Só que ele não tem uma teoria de transformação social, e as teorias que temos são voluntaristas e dificultam a possibilidade de ver alternativas. Nesse sentido, Paulo Freire também tem o mérito de não imaginar nem dar muitas soluções; de se colocar numa posição mais modesta, de querer problematizar o futuro: "eu prefiro não saber qual é a solução do que estar amarrado a certezas que são obstáculos."

Fazendo a ponte com a revista, o desenvolvimento da educação de adultos faz-se em contraposição à educação escolar, no sentido tradicional que temos estado aqui a criticar; e é nesse sentido que o Ivan Illich hoje aparece como um inspirador dos que pretendem repensar a educação a partir de alguns dos aspectos que foram mais criativos e inovadores no campo educativo, como é o caso da educação de adultos.

(...)

Neste dossier:

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