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Tratado Transatlântico: um tufão que ameaça os europeus

Iniciadas em 2008, as discussões sobre o Acordo de Comércio Livre entre o Canadá e a União Europeia foram concluídas a 18 de Outubro. Um bom presságio para o governo americano, que espera concluir uma parceria deste tipo com o Velho Continente. Este projeto, negociado em segredo e intensamente apoiado pelas multinacionais, permitirá que estas processem os Estados que não se verguem às normas do liberalismo. Artigo de Lori Wallach, disponível no site da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique

Será imaginável que multinacionais processem judicialmente os governos cuja orientação política tenha o efeito de diminuir os seus lucros? Será concebível que elas possam exigir – e conseguir! – uma generosa compensação por ganhos cessantes (não realizados), induzida por um direito do trabalho demasiado constrangedor ou por uma legislação ambiental demasiado espoliadora? Por inverosímil que pareça, este cenário não é novo. Ele estava já presente, com toda a clareza, no Projeto de Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI) negociado secretamente entre 1995 e 1997 pelos vinte e nove Estados-membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)1. Divulgado in extremis, nomeadamente pelo Le Monde diplomatique, o texto suscitou uma vaga de protestos sem precedentes, forçando os seus promotores a retirá-lo. Passados quinze anos, eis que regressa com novas roupagens.

O Acordo de Parceria Transatlântica (APT, TTIP na sigla em inglês), negociado desde Julho de 2013 pelos Estados Unidos e pela União Europeia, é uma versão modificada do AMI. Prevê que as legislações em vigor dos dois lados do Atlântico se verguem às normas do comércio livre estabelecidas por e para as grandes empresas europeias e norte-americanas, sob pena de sanções comerciais para os países infratores ou de reparações de vários milhões de euros em benefícios dos queixosos.

De acordo com o calendário oficial, as negociações só deverão estar concluídas num prazo de dois anos. O APT combina e agrava os elementos mais negativos dos acordos celebrados no passado. Se entrar em vigor, os privilégios das multinacionais adquirirão força de lei e atarão seriamente as mãos dos governantes. Impermeável às alternâncias políticas e às mobilizações populares, ele seria aplicado a bem ou a mal, uma vez que as suas disposições só poderiam ser alteradas com o acordo unânime dos países signatários. Replicaria, na Europa, o espírito e as modalidades do seu modelo asiático, o Acordo de Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), atualmente em curso de adoção em doze países, depois de ter sido intensamente promovido pelos meios dos negócios americanos. Sozinhos, o APT e o TPP formariam um império económico capaz de ditar condições fora das suas fronteiras: qualquer país que quisesse estabelecer relações comerciais com os Estados Unidos ou com a União Europeia seria obrigado a adotar, tais quais, as regras prevalecentes no seu mercado comum.

Tribunais especialmente criados

As negociações em torno do APT e do TPP decorrem à porta fechada porque visam liquidar grande parte do sector não-mercantil. As delegações americanas contam com mais de seiscentos consultores mandatados pelas multinacionais, que dispõem de um acesso ilimitado aos documentos preparatórios e aos representantes da administração. Nada deve ser revelado. Foram dadas instruções no sentido de manter os jornalistas e os cidadãos arredados das discussões: serão informados em tempo útil, na assinatura do tratado, quando for demasiado tarde para reagirem.

Num assomo de sinceridade, o antigo ministro do Comércio norte-americano Ronald (Ron) Kirk valorizou o interesse “prático”de “preservar um certo grau de discrição e de confidencialidade”2. A última vez que uma versão de trabalho de um acordo em curso de formalização foi colocada na praça pública, sublinhou Ron Kirk, as negociações fracassaram. Aludia, assim, ao Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), uma versão alargada do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (ALENA); o projeto, duramente defendido por George W. Bush, foi revelado no sítio Internet da administração em 2001. A senadora Elizabeth Warren respondeu a estas declarações afirmando que um acordo negociado sem qualquer exame democrático nunca devia ser assinado3.

A imperiosa vontade de afastar da atenção do público a preparação do tratado americano-europeu percebe-se facilmente. Mais vale ter tempo para preparar o anúncio ao país dos efeitos que o tratado terá a todos os níveis: do topo do Estado federal aos conselhos municipais, passando pelos governadores e pelas assembleias locais, os representantes eleitos terão de redefinir completamente as suas políticas públicas de maneira a satisfazer os apetites do privado nos sectores que, em parte, ainda lhe escapem. Segurança dos alimentos, normas de toxicidade, seguros de saúde, preço dos medicamentos, liberdade da Internet, proteção da vida privada, energia, cultura, direitos de autor, recursos naturais, formação profissional, equipamentos públicos, imigração: não há qualquer domínio de interesse geral que escape à vergonha do comércio livre institucionalizado. A ação política dos eleitos limitar-se-á a negociar com empresas, ou com os seus mandatários locais, as migalhas de soberania que eles aceitem dar-lhes.

Está já estipulado que os países signatários deverão assegurar a “colocação em conformidade das suas leis, regulamentos e procedimentos” com as disposições do tratado. Ninguém duvida que procurarão honrar escrupulosamente este compromisso. No caso contrário, poderiam ser alvo de processos judiciais num dos tribunais especialmente criados para arbitrar os litígios entre os investidores e os Estados, que serão dotados do poder de sentenciar sanções comerciais contra estes últimos.

A ideia pode parecer inverosímil, mas inscreve-se na filosofia dos tratados comerciais já em vigor. No ano passado, a Organização Mundial do Comércio (OMC) condenou os Estados Unidos pelas suas latas de atum com o rótulo “sem perigo para os golfinhos”, pela indicação do país de origem em carnes importadas ou ainda pela proibição do tabaco com aroma a rebuçado, por considerar estas medidas protecionistas como entraves ao comércio livre. Infligiu também à União Europeia multas de várias centenas de milhões de euros por esta se recusar a importar organismos geneticamente modificados (OMG). A novidade introduzida pelo APT e pelo TTP é que eles permitiriam às multinacionais processar, em seu próprio nome, um país signatário cuja política tenha um efeito restritivo no seu dinamismo comercial.

Sob um regime como este, as empresas teriam condições para contrariar as políticas de saúde, de proteção do ambiente ou de regulação do sistema financeiro implantadas num qualquer país exigindo-lhe perdas e danos em tribunais extrajudiciários. Uma vez que estes tribunais especiais, compostos por três advogados de negócios, responderiam às leis do Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas (ONU), estariam habilitados a condenar o contribuinte a pesadas reparações a partir do momento em que a sua legislação restringisse os “futuros lucros esperados” de uma empresa.

Este sistema “investidor contra Estado” que parecia ter sido varrido do mapa desde o abandono do AMI em 1998, foi restaurado às escondidas ao longo dos anos. Em virtude de vários acordos comerciais assinados por Washington, 400 milhões de dólares passaram do bolso dos contribuintes para o das multinacionais por causa da proibição de produtos tóxicos, do enquadramento da exploração da água, do solo ou da floresta, etc.4. Sob a égide destes mesmos tratados, os procedimentos hoje estabelecidos – nos assuntos de interesse geral como as patentes na saúde, a luta contra a poluição ou as leis sobre o clima e as energias fósseis – farão as ações judiciais por perdas e danos elevar-se para 14 mil milhões de dólares.

O APT tornaria ainda mais pesada a fatura desta extorsão legalizada, tendo em conta a importância dos interesses em jogo no comércio transatlântico. Estão presentes no solo americano 3.300 empresas europeias, através de 24 mil filiais, podendo qualquer uma delas considerar, um dia, que tem fundamentos para exigir reparações por perdas comerciais. A exposição a estas surpresas ultrapassaria em muito os custos causados pelos anteriores tratados. Por seu lado, os países-membros da União Europeia ver-se-iam expostos a um risco financeiro ainda maior, sabendo-se que 14.400 companhias americanas dispõem na Europa de uma rede de 50.800 filiais. No total, poderiam atirar-se à caça aos tesouros públicos 75 mil empresas.

Oficialmente, este regime devia servir, à partida, para consolidar a posição dos investidores nos países em vias de desenvolvimento desprovidos de um sistema jurídico fiável; permitir-lhe-ia fazer valer os seus direitos em caso de expropriação. Mas a União Europeia e os Estados Unidos não são propriamente por zonas de não-direito; pelo contrário, dispõem de uma justiça funcional e plenamente respeitadora do direito de propriedade. Colocando-os apesar de tudo sob a tutela de tribunais especiais, o APT demonstra que o seu objetivo não é proteger os investidores, mas antes aumentar o poder das multinacionais.

Processo por aumento do salário mínimo

Como é evidente, os advogados que compõem estes tribunais não têm de prestar contas a qualquer eleitorado. Invertendo alegremente os papéis, tanto podem servir de juízes como defender a causa dos seus poderosos clientes5. Os juristas do investimento internacional constituem um mundo muito pequeno: são apenas quinze os que têm partilhado 55% dos casos tratados até hoje. As suas decisões, obviamente, são inapeláveis.

Os “direitos” que eles têm por missão proteger são formulados de maneira deliberadamente aproximativa e a sua interpretação raramente serve os interesses da maioria. Assim aconteceu com o direito dado ao investidor de beneficiar de um quadro regulamentar conforme às suas “previsões” – pelo que deve entender-se que o governo se proíbe de modificar a sua política a partir do momento em que o investimento tenha tido lugar. Quanto ao direito de obter uma compensação em caso de “expropriação indireta”, isso significa que os poderes públicos deverão pagar no caso de a sua legislação ter o efeito de diminuir o valor de um investimento, inclusive quando esta mesma legislação se aplicar também às empresas locais. Os tribunais reconhecem também o direito do capital a adquirir cada vez mais terras, recursos naturais, equipamentos, fábricas, etc. As multinacionais não têm de dar qualquer contrapartida: não têm qualquer obrigação em relação aos Estados e podem intentar uma ação judicial onde e quando lhes apetecer.

Alguns investidores têm uma conceção muito extensiva dos seus direitos inalienáveis. Recentemente, foi possível ver empresas europeias intentarem ações judiciais contra o aumento do salário mínimo no Egito ou contra a limitação das emissões tóxicas no Peru, servindo o ALENA, neste último caso, para proteger o direito a poluir do grupo americano Renco6. Outro exemplo é o do gigante do tabaco Philip Morris que, incomodado pela legislação antitabaco do Uruguai e da Austrália, intimou estes dois países a comparecer num tribunal especial. O grupo farmacêutico americano Eli Lilly quer que lhe seja feita justiça contra o Canadá, culpado de ter estabelecido um sistema de patentes que torna certos medicamentos mais acessíveis. O fornecedor de eletricidade sueco Vattenfall reclama vários milhares de milhões de euros à Alemanha pela sua “reconversão energética”, que enquadra mais severamente as centrais a carvão e promete uma saída do nuclear.

Não há limite para as penalidades que um tribunal pode infligir a um Estado em benefício de uma multinacional. Há um ano, o Equador foi condenado a pagar o montante recorde de 2 mil milhões de euros a uma companhia petrolífera7. Mesmo quando os governos ganham os processos, têm de pagar custas judiciais e comissões diversas que atingem, em média, 8 milhões de dólares por processo, dinheiro que é esbanjados em prejuízo dos cidadãos. Por causa disto, muitas vezes os poderes públicos preferem negociar com o queixoso a ter de defender a sua causa no tribunal. Assim, o Estado canadiano evitou uma convocação para a barra dos tribunais revogando à pressa a proibição de um aditivo tóxico utilizado pela indústria petrolífera.

Apesar disso, as reclamações não param de aumentar. Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), o número de casos submetidos aos tribunais especiais decuplicou desde o ano 2000. O sistema de arbitragem comercial foi concebido a partir da década de 1950, mas nunca tinha sido tão útil aos interesses privados como em 2012, ano excecional em termos de interposição de processos judiciais. Este boom criou um florescente viveiro de consultores financeiros e de advogados de negócios.

O projeto de grande mercado americano-europeu é defendido há muitos anos pelo Diálogo Económico Transatlântico (Trans-Atlantic Business Dialogue, TABD), um lóbi hoje mais conhecido pela designação de Trans-Atlantic Business Council (TABC). Criado em 1995 com o patrocínio da Comissão Europeia e do Ministério do Comércio norte-americano, este grupo de ricos empresários milita a favor de um “diálogo” altamente construtivo entre as elites económicas dos dois continentes, a administração de Washington e os comissários de Bruxelas. O TABC é um fórum permanente que permite às multinacionais coordenarem os seus ataques contra as políticas de interesse geral que ainda se mantêm de pé dos dois lados do Atlântico.

O seu objetivo, publicamente assumido, é eliminar aquilo a que chama as “discordâncias comerciais” (trade irritants), ou seja, operar nos dois continentes segundo as mesmas regras e sem interferência dos poderes públicos. “Convergência regulatória” e “reconhecimento mútuo” fazem parte dos cartazes semânticos que o grupo agita para incitar os governos a autorizar os produtos e serviços contrários às legislações locais.

A injusta rejeição da carne de porco com ractopamina

Os ativistas do mercado transatlântico não se limitam a defender uma simples flexibilização das leis existentes. Em vez disso, propõem simplesmente reescreverem-nas eles próprios. Assim, a Câmara Americana de Comércio e a Business Europe, duas das maiores organizações patronais do mundo, fizeram um apelo aos negociadores do APT no sentido de estes reunirem à volta de uma mesa de trabalho uma amostra de grandes acionistas e responsáveis políticos, a fim de que eles “redijam em conjunto os textos de regulação” que, em seguida, terão força de lei nos Estados Unidos e na União Europeia. Pode perguntar-se, aliás, se a presença dos políticos na oficina de escrita comercial é verdadeiramente indispensável…

De facto, as multinacionais mostram uma assinalável franqueza na exposição das suas intenções. Na questão dos OGM, por exemplo. Nos Estados Unidos, um em cada dois estados pensa tornar obrigatório um rótulo que indique a presença de organismos geneticamente modificados num alimento – uma medida desejada por 80% dos consumidores do país –, os industriais do agro-alimentar, mas, ali como na Europa, fazem pressão para impedir este tipo de etiquetagem. A Associação Nacional de Confeiteiros foi direta: “A indústria americana quer que o APT avance nesta questão, eliminando a etiquetagem OGM e as normas de traçabilidade”. A muito influente Associação da Indústria Biotecnológica (Biotechnology Industry Organization, BIO), a que pertence o gigante Monsanto, mostra-se, por seu lado, indignada pelo facto de os produtos que contêm OGM e são vendidos nos Estados Unidos poderem ser recusados no mercado europeu. Em consequência, deseja que o “fosso que está a cavar-se entre a desregulação dos novos produtos biotecnológicos nos Estados Unidos e a forma como são recebidos na Europa”seja rapidamente ultrapassado8. A Monsanto e os seus amigos não escondem a esperança de que a zona de comércio livre transatlântico permita, finalmente, impor aos europeus o seu “abundante catálogo de produtos OGM que aguardam aprovação e utilização”9.

Na frente da vida privada a ofensiva não é menos vigorosa. A Coligação do Comércio Digital (Digital Trade Coalition, DTC), que reúne industriais da Internet e das altas tecnologias, pressiona os negociadores do APT para que levantem as barreiras que impedem que os fluxos de dados pessoais se difundam livremente da Europa para os Estados Unidos. “O atual ponto de vista da União segundo o qual os Estados Unidos não fornecem uma proteção “adequada” da vida privada não é razoável”, afirmam os lobistas com impaciência. À luz das revelações de Edward Snowden sobre o sistema de espionagem da Agência Nacional de Segurança (National Security Agency, NSA), esta opinião tão marcada tem as suas razões de ser. Contudo, ela não se compara à declaração do US Council for International Business (USCIB), um grupo de empresas que, à semelhança da Verizon, abasteceram a NSA de forma maciça com dados pessoais: “O acordo devia procurar circunscrever as exceções, como a segurança e a vida privada, a fim de assegurar que elas não servem de entraves disfarçados ao comércio”.

As normas de qualidade na alimentação são também alvo das negociações. A indústria americana da carne quer que seja suprimida a regra europeia que proíbe os frangos desinfetados com cloro. Na vanguarda deste combate está o grupo Yum!, proprietário da cadeia de restauração rápida Kentucky Fried Chicken (KFC), que pode contar com a força de ataque das organizações patronais. “A União só autoriza o uso de água e de vapor sobre as carcaças”, protesta a Associação Norte-Americana da Carne, enquanto um outro grupo de pressão, o Instituto Americano da Carne, lamenta a “rejeição injustificada [por Bruxelas] das carnes com aditivos beta-agonistas, como o cloridrato de ractopamina”.

A ractopamina é um medicamento utilizado para aumentar o teor em carne magra dos porcos e dos bovinos. Devido aos riscos que coloca à saúde dos animais e dos consumidores, ela foi banida em cento e sessenta países, entre os quais os Estados-membros da União, a Rússia e a China. Para a fileira porcina americana, este medida de proteção constitui uma distorção da concorrência livre a que o APT deve pôr fim com carácter de urgência.

«Os produtores de carne de porco americanos não aceitarão outro resultado que não seja o levantamento da interdição europeia da ratopamina», ameaça o Conselho Nacional dos Produtores de Carne de Porco (National Pork Producers Council, NPPC). Enquanto isto, do outro lado do Atlântico, os industriais reunidos na Business Europe denunciam as “barreiras que afectam as exportações europeias para os Estados Unidos, como a lei americana sobre a segurança alimentar”. Desde 2011, esta lei autoriza os serviços de controlo a retirar do mercado os produtos de importação contaminados. Também neste caso, pede-se aos negociadores do APT que façam tábua rasa.

O mesmo se passa com os gases com efeito de estufa. A organização Airlines for America (A4A), braço armado dos transportadores aéreos americanos, estabeleceu uma lista dos “regulamentos inúteis que causam um considerável prejuízo à [sua] indústria” e que o APT, claro, está vocacionado para varrer do mapa. No topo desta lista figura o sistema europeu de quotas de emissões, que obriga as companhias aéreas a pagar pela poluição que causam com o carbono. Bruxelas suspendeu provisoriamente este programa; a A4A exige a sua eliminação definitiva em nome do “progresso”.

Mas é no sector financeiro que a cruzada dos mercados é mais virulenta. Cinco anos depois da irrupção da crise do subprime, os negociadores americanos e europeus estão convencidos de que as veleidades de regulação da indústria financeira já não tem razão de ser. O quadro que querem implantar prevê o levantamento de todas as proteções em matéria de investimentos de risco e o impedimento aos governos de controlarem o seu volume, a sua natureza ou a origem dos produtos financeiros colocados no mercado. Em suma, o que está em causa é pura e simplesmente varrer do mapa a palavra “regulação”.

De onde vem este extravagante regresso ao passado thatcheriano? Entre outras coisas, é uma resposta aos desejos da Associação dos Bancos Alemães, que constantemente exprime “preocupações”em relação à (tímida) reforma de Wall Street adotada na sequência da crise de 2008. Um dos seus membros mais ativos neste dossier é o Deutsche Bank, que no entanto recebeu, em 2009, centenas de milhares de milhões de dólares da Reserva Federal americana em troca de títulos associados a créditos hipotecários10. O gigante alemão quer acabar com a regulamentação Volcker, trave mestra da reforma de Wall Street, que a seu ver exerce “um peso demasiado pesado sobre os bancos não americanos”. A Insurance Europe, ponta de lança das companhias de seguros europeias, deseja por seu lado que o APT “elimine”as garantias colaterais que dissuadem o sector de se aventurar nos investimentos de alto risco.

Quanto ao Fórum dos Serviços Europeus, organização patronal de que faz parte o Deutsche Bank, atua nos bastidores das conversações transatlânticas para que as autoridades de controlo norte-americanas deixem de meter o nariz nos negócios dos grandes bancos estrangeiros que operam no seu território. Do lado americano, espera-se sobretudo que o APT enterre para sempre o projeto europeu de taxa sobre as transações financeiras. O assunto parece estar já resolvido, uma vez que a própria Comissão Europeia considerou que esta taxa não estaria em conformidade com as regras da OMC11. Na medida em que a zona de comércio livre transatlântica promete um liberalismo ainda mais descontrolado do que o da OMC, e numa altura em que o Fundo Monetário Internacional (FMI) se opõe sistematicamente a qualquer forma de controlo dos movimentos de capitais, a pobre “Taxa Tobin” já não preocupa muita gente nos Estados Unidos.

Não é só na indústria financeira que se ouvem as sirenes da desregulação. O APT quer abrir à concorrência todos os sectores “invisíveis” ou de interesse geral. Os Estados signatários seriam forçados, não apenas a submeter os seus serviços públicos à lógica mercantil, mas também a renunciar a qualquer intervenção junto dos fornecedores de serviços estrangeiros que cobicem os seus mercados. As margens de manobra política em matéria de saúde, energia, educação, água ou transporte seriam progressivamente reduzidas. A febre comercial também não poupa a imigração, uma vez que os instigadores do APT se arrogam a competência de estabelecer uma política comum de fronteiras – sem dúvida para facilitar a entrada dos que têm um bem ou serviço a vender em detrimento dos outros.

Nos últimos meses, o ritmo das negociações intensificou-se. Em Washington há boas razões para crer que os dirigentes europeus estão dispostos a tudo para reavivar um crescimento económico moribundo, mesmo pagando o preço de renegar o seu pacto social. O argumento dos promotores do APT, segundo o qual o comércio livre desregulado facilitaria as trocas comerciais e seria, portanto, criador de emprego, pesa aparentemente mais do que o medo de um sismo social. As barreiras alfandegárias que ainda subsistem entre a Europa e os Estados Unido são, contudo, “já bastante baixas”, como reconhece o representante americano do Comércio12. Os próprios artesãos do APT admitem que o seu principal objetivo não é aliviar os constrangimentos aduaneiros, de qualquer modo insignificantes, mas impor “a eliminação, a redução ou a prevenção de políticas nacionais supérfluas”13, sendo considerado “supérfluo” tudo o que retarda o escoamento das mercadorias, como a regulação financeira, a luta contra o aquecimento climático ou o exercício da democracia.

É verdade que os raros estudos consagrados às consequências do APT não perdem tempo com os seus efeitos sociais e económicos. Um relatório frequentemente citado, com origem no Centro Europeu de Economia Política Internacional (European Centre for International Policy Economy, ECIPE), afirma com a autoridade de um Nostradamus de escola comercial que o APT trará à população do mercado transatlântico um aumento de riqueza de 3 cêntimos por pessoa e por dia… a partir de 202914.

Apesar do seu otimismo, o mesmo estudo avalia em apenas 0,06% o aumento do produto interno bruto (PIB) na Europa e nos Estados Unidos na sequência da entrada em vigor do APT. E mesmo esse “impacto” é muito irrealista, na medida em que os autores do estudo postulam que o comércio livre “dinamize” o crescimento económico, uma teoria regularmente refutada pelos factos. Um aumento tão infinitesimal seria, aliás, impercetível. Por comparação, a quinta versão do iPhone da Apple deu aos Estados Unidos um aumento do PIB oito vezes superior.

Quase todos os estudos sobre o APT foram financiados por instituições favoráveis ao comércio livre ou por organizações patronais, razão pela qual os custos sociais do tratado não são referidos, tal como acontece com as suas vítimas diretas, apesar de estas poderem ascender a centenas de milhões. Mas nem tudo está perdido. Como mostraram as desventuras do AMI, do ALCA e de certos ciclos de negociação na OMC, a utilização do “comércio” como cavalo de Troia para desmantelar as proteções sociais e instaurar uma junta de encarregados de negócios fracassou várias vezes no passado. Nada garante que não volte a ser assim.

Artigo de Lori Wallach, Diretora da Public Citizen’s Global Trade Watch (Washington), citizen.org, disponível no site da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique


1 Ler “Le nouveau manifeste du capitalisme mondial”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1998.

2 “Some Secrecy Needed in Trade Talks: Ron Kirk”, Reuters, 13 de maio de 2012.

3 Zach Carter, “Elizabeth Warren Opposing Obama Trade Nominee Michael Froman”, 19 de junho de 2013, Huffingtonpost.com.

4 “Table of Foreign Investor-state Cases and Claims under NAFTA and Other US 'Trade' Deals”, Public Citizen, agosto de 2013, citizen.org.

5 Andrew Martin, “Treaty Disputes Roiled by Bias Charges”, 10 de julho de 2013, Bloomberg.com.

6 “Renco Uses US-Peru FTA to Evade Justice for La Oroya Pollution”, Public Citizen, 28 de novembro de 2012.

7 “Ecuador to Fight Oil Dispute Fine”, Agence France-Presse, 13 de outubro de 2012.

8 Comentários sobre o Acordo de Parceria Transatlântica, documento da BIO, Washington, maio de 2013.

9 “EU-US High Level Working Group on Jobs and Growth. Response to Consultation by EuropaBio and BIO”, http://ec.europa.eu.

10 Shahien Nasiripour, “Fed Opens Books, Revealing European Megabanks Were Biggest Beneficiaries”, 10 de janeiro de 2012, Huffingtonpost.com.

11 “Europe Admits Speculation Taxes a WTO Problem”, Public Citizen, 30 de abril de 2010.

12 Mensagem de Demetrios Marantis, representante americano do Comércio, a John Boehner, porta-voz republicano na Câmara dos Representantes, Washington, 20 de março de 2013, http://ec.europa.eu.

13 Final Report. High Level Working Group on Jobs and Growth, 11 de fevereiro de 2013, http://ec.europa.eu.

14 “TAFTA’s Trade Benefit: A Candy Bar”, Public Citizen, 11 de julho de 2013.

(...)

Neste dossier:

Acordo de comércio UE-EUA: As transnacionais contra a democracia

 

Está a ser negociado o acordo de comércio livre entre a UE e os EUA, com grande opacidade e nas costas da maioria da população. Este tratado afetará profundamente a vida dos cidadãos e imporá os interesses das transnacionais sobre a democracia. Dossier organizado por Carlos Santos

Boas razões para rejeitar o grande mercado transatlântico

O acordo de comércio UE/EUA afetará a vida de cada pessoas, em muitos terrenos: Emprego, segurança alimentar, saúde, reformas, água, energia, serviços públicos, educação, liberdade da Internet, cultura e produção artística.

Como o tratado transatlântico ameaça o emprego e os direitos sociais

Não só centenas de milhares de empregos estão ameaçados em inúmeros setores que serão afetados pela redução de tarifas aduaneiras entre a UE e os EUA, como também está em causa o direito dos europeus a trabalhar em condições dignas, a se organizarem e a se defenderem numa Europa fortemente atingida pela austeridade e o desemprego. Extrato do relatório “A Brave New Transatlantic Partnership”, publicado pela rede Seattle to Brussels (S2B).

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Tratado transatlântico: um projeto para a hegemonia atlantista

As regras que vierem a ser estabelecidas no tratado transatlântico, terão um alcance internacional, muito mais amplo que a área de vigência. Este acordo de comércio pode tornar-se no meio primordial para impor a todo o mundo o caminho “definido pelos interesses da UE e dos EUA”. Por Carlos Santos

20 anos do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio: o protetorado mexicano

No vigésimo aniversário do NAFTA não há nada a festejar. O comércio encontra-se concentrado com os Estados Unidos (cerca de 77 por cento das exportações mexicanas vão para esse país). A vulnerabilidade da economia mexicana é a outra face do incremento do comércio com os EUA. Por AlejandroNadal

Acordo UE-EUA: O que nos reserva a maior zona de livre comércio do mundo? (I)

Este artigo, que será publicado em duas partes, informa sobre o que está em discussão no tratado transatlântico, que está a ser negociado entre a União Europeia e os Estados Unidos. Na primeira parte, a autora Agnès Rousseaux responde a perguntas básicas. A segunda parte, aponta questões essenciais que estão em causa neste acordo.

Acordo UE-EUA: O que nos reserva a maior zona de comércio livre do mundo? (II)

Na segunda parte deste artigo, Agnès Rousseaux aponta o que considera o principal perigo deste acordo e aborda também as suas repercussões nas legislações sociais, no emprego e nas condições de trabalho e no ambiente.
Aceda à primeira parte deste artigo