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As políticas promovidas pela União Europeia são ineficazes e injustas

É fácil demonstrar que a causa dos problemas dos países com grandes dificuldades não é a despesa pública excessiva. Na realidade, todos eles (Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda) têm, em percentagem do PIB, uma despesa pública mais baixa que a média da União Europeia dos Quinze Por Vicenç Navarro revista digital Sistema

Existem muitas interpretações das causas da enorme crise financeira e económica que o mundo, muito particularmente a União Europeia e o sul do nosso continente, está a sofrer.

Uma dessas interpretações, defendida pela sensibilidade liberal, assume que a culpa é do aumento excessivo das despesas públicas, que abafaram o crescimento económico. Desta interpretação derivam as propostas de diminuição dessa despesa, a fim de reduzir o défice e a dívida pública. Actualmente, esta visão generalizou-se na maior parte dos fóruns financeiros, políticos e mediáticos da União Europeia. Como prova da certeza do seu diagnóstico, dizem que os países que hoje estão em pior situação na União Europeia são os países do Sul da Europa – Grécia, Portugal e Espanha - e a Irlanda, que têm grandes défices em consequência da sua suposta falta de disciplina nas políticas de despesa. A suposta exuberância dessas despesas (a possibilidade de reforma aos 55 anos na Grécia é o caso mais citado) seria a causa das dores de cabeça desses países. Daí a pressão para que reduza significativamente a sua «exagerada» despesa pública, a fim de se recuperarem e de se salvarem do colapso (salvando assim, também, o euro, que passa por dificuldades por culpa destes países). Quanto ao desemprego elevado, este é atribuído predominantemente à suposta rigidez do mercado laboral, consequência de sindicatos excessivamente poderosos e influentes que, na sua acérrima defesa dos trabalhadores com contrato fixo (e salários muito altos), dificultam a recuperação económica e favorecem a subida do desemprego.

 Desta interpretação das causas das crises emanam as políticas públicas promovidas pela União Europeia, que consistem na redução da despesa e do emprego público, na diminuição dos direitos sociais e laborais e na desregulação dos mercados laborais. O desenvolvimento destas políticas (que atingem a sua máxima expressão no caso da Grécia) é considerado necessário para a saída da crise. Na realidade, é o desenvolvimento das políticas liberais que o mundo financeiro e empresarial desejou durante muitos anos, utilizando agora a crise para as implementar. O seu custo social e humano será enorme, e o seu impacto na crise será maior, acentuando-a. O que é gritante é que este dogma liberal, reproduzido nos meios de informação e persuasão, não tem grandes evidências empíricas que o sustentem. É fácil demonstrar que a causa dos problemas dos países com grandes dificuldades não é a despesa pública excessiva. Na realidade, todos eles (Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda) têm, em percentagem do PIB, uma despesa pública mais baixa que a média da União Europeia dos Quinze, o grupo de países mais desenvolvidos da UE, a que todos eles pertencem. O mesmo acontece com a despesa pública social, em percentagem do PIB, também mais baixa que a média da UE-15. Verifica-se uma situação idêntica com o emprego público. A percentagem da população que trabalha no sector público em todos estes países é mais baixa que a média da UE-15 (ver Navarro, V. (dir.) La situación social en España, Vol.III, Biblioteca Nueva).

Quanto aos, supostamente, salários exorbitantes, os números demonstram que, tomando os salários dos trabalhadores da manufactura como ponto de referência, todos eles têm níveis salariais mais baixos que a média da UE-15 (mais baixos dos que lhes corresponderia pelo nível de riqueza que apresentam) (ver V. Navarro, Marta Tur e Miquel Campa, La situación de la clase trabajadora en España, em www.vnavarro.org, secção Economia Política). Os lucros empresariais e da banca, pelo contrário, situam-se entre os mais altos, bem como a fraude fiscal. Todos estes dados demonstram que os problemas que têm não se devem à sua despesa pública «excessiva» ou aos salários «exorbitantes».

Daí que seja muito mais credível outra explicação para a origem e causas das crises financeiras e económicas, explicação marginalizada e discriminada nos fóruns e meios de informação e persuasão espanhóis e na UE. As crises actuais são uma consequência directa das políticas liberais promovidas pelo establishment europeu, que provocaram uma enorme polarização dos rendimentos e o aparecimento de enormes desigualdades. Os países citados são os mais desiguais na UE, continente onde as desigualdades aumentaram enormemente. Os rendimentos do trabalho como percentagem dos rendimentos totais sofreram um decréscimo substancial, diminuindo com isso a procura, uma das causas mais importantes da crise. A outra causa da crise é a falta de crédito, também ela resultado da polarização dos rendimentos e do crescimento exuberante dos lucros do capital, que foram investidos predominantemente em actividades especulativas (como as imobiliárias e o desenvolvimento de instrumentos de alto risco) criando bolhas que, ao rebentar, provocaram o enorme problema da falta de crédito.

 

A Alternativa Progressista

As soluções são fáceis de ver. É necessário estimular a procura naqueles países, bem como em toda a UE, tendo por base uma redistribuição dos rendimentos com um incremento da capacidade aquisitiva das classes populares, impedindo baixos salários (que são a causa da baixa produtividade) e incrementando bastante a despesa pública com o objectivo de criar emprego. Precisamente as políticas opostas às que estão a ser efectuadas na UE. No século XX, nunca se saiu de nenhuma depressão ou grande recessão (como a actual) sem que tenha havido uma enorme expansão da despesa pública e crescimento da dívida. A Grande Depressão solucionou-se com o New Deal e com um grande incremento da despesa pública durante a Segunda Guerra Mundial. Na Europa, a reconstrução das economias, quase destruídas em consequência da Segunda Guerra Mundial, teve como base grandes investimentos públicos, fiscais e sociais, facilitados pelo Plano Marshall. Acreditar que se pode sair da actual recessão sem um grande aumento da despesa pública em toda a UE é ignorar as lições da História. Reduzir a despesa pública é um bilhete de suicídio. Na realidade, se não fosse pela redução da despesa pública, a Espanha já teria saído da recessão.

Quanto ao outro grande problema, a falta de crédito, este deve solucionar-se com base numa intervenção pública, não para ajudar os banqueiros como está a fazer-se agora, mas para garantir o acesso ao crédito. Como era previsível, as medidas de austeridade exigidas às classes populares por parte da UE são acompanhadas por medidas muito generosas à banca, tanto à grega como à alemã (entre outras), proprietárias da dívida grega. Tal como disse, e bem, Joseph Stiglitz, se todas as «ajudas» à banca tivessem sido investidas na criação de bancos públicos de crédito, a falta de crédito já teria sido solucionada. Gastaram-se 700.000 milhões de dólares, só nos Estados Unidos, para salvar a banca, quando, com este dinheiro, poderia (e deveria) criar-se uma banca ou bancas públicas que garantissem o acesso ao crédito por parte de empresas (sobretudo médias e pequenas) e de cidadãos. Situação semelhante ocorreu na União Europeia (ver V. Navarro, ¿Por qué no banca pública? www.vnavarro.org, secção Economia Política).

Aquilo a que assistimos hoje é a expressão plena do que costumava chamar-se «luta de classes», com as classes dominantes lideradas pelo capital financeiro a impor as suas exigências às classes populares a fim de recuperar a sua rentabilidade. Como disse Warren Buffet, uma das pessoas mais ricas do mundo e conhecedor do mundo financeiro e empresarial a que pertence, «há classes e luta de classes, e a minha classe está a ganhar essa luta». A famosa expressão do aperto do cinto só se aplica às classes dominadas. As dominantes nem cinto usam. A inexistente regulação da banca, dois anos depois do início desta crise financeira de que foi causadora, demonstra até que ponto o mundo político está configurado por estes interesses financeiros e empresariais que prejudicam enormemente a economia real. Não surpreende por isso que os graves problemas de credibilidade das denominadas democracias tenham como consequência o questionar da sua legitimidade. A agitação social na Grécia é o início de um processo que porá de manifesto o que até agora era visível apenas passivamente, na expressão da abstenção nos processos eleitorais. A transformação dessa abstenção passiva em agitação activa será, a partir de agora, uma constante dos anos vindouros. O perigo é que esta agitação seja capitalizada pela direita, tal como acontece actualmente nos Estados Unidos. Veremos o que acontecerá na União Europeia.

7 de Maio de 2010

 

Vicenç Navarro foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. Actualmente é Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). É também professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige também o Observatório Social de Espanha.

Tradução para o Esquerda.net de Helena Pitta

Sobre o/a autor(a)

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
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Neste dossier:

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