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Poeta do invisível

Normalmente, quando se fala em mímica, a imagem que vem à cabeça é a de um actor ou uma atriz de rosto pintado de branco, que veste roupas listadas, calças largas e chapéu. O artista age em silêncio e, com gestos precisos, faz com que a audiência entenda perfeitamente o que ele cria em cena. A existência dessa caracterização e dessa técnica, que comove e influencia pessoas no mundo inteiro há 60 anos, deve-se ao trabalho do genial francês Marcel Marceau, que morreu no dia 22 de Setembro, aos 84 anos.

Por Mariana Ceratti, publicado originalmente pelo Correio Braziliense em 24/9/2007

Marceau fascinou plateias, fez rir e chorar com um personagem que, hoje, exactamente 60 anos depois de sua criação, é imitado por milhares de admiradores: o cómico, sensível, melancólico, altamente falível (portanto, humano) e inigualável Bip. Com a sua criatura, o mímico rodou o mundo e materializou uma técnica que exige anos de estudo e uma disciplina corporal digna de um bailarino clássico ou de um atleta. "Antes mesmo de existir a Internet e essa tecnologia de hoje, Marceau já agia num mundo virtual", compara o mímico Miquéias Paz, um dos principais representantes dessa arte no Distrito Federal (Brasil). Há 10 anos, ao saber que o seu ídolo faria uma apresentação em São Paulo, Miquéias não teve dúvidas: pegou o carro e guiou durante uma noite inteira só para vê-lo. "Ele estava com setenta e poucos anos, mas exibia o vigor de um rapaz de 20", lembra-se.

É Miquéias que descreve um dos princípios do método de Marceau: o trabalho com um ponto interno de referência, sem conexão com o cenário. "A partir desse ponto, o actor estabelece como é seu ambiente e onde estão os objectos em cena. Dá a esses objectos peso, inércia e movimento. E faz o corpo reagir a eles", define. A precisão e a elegância que o mestre dos mímicos dava aos seus gestos era tamanha que acabou inspirando artistas e criadores que, a princípio, nada têm a ver com as artes cénicas. Um deles foi Michael Jackson. Inspirado em Marceau, o astro do pop inventou o moonwalk, o passo de dança em que ele anda para trás, como se fosse empurrado pelo vento.

Talento nato

Mas Bip, o alter ego de Marcel Marceau, não era feito só de gestos capazes de recriar um mundo à parte em cena. Mais do que abrir portas e brincar com objectos virtuais, mais do que tocar instrumentos invisíveis e criar animais diversos com o corpo, o personagem transmitia a emoção de seu criador e reflectia a história de Marceau. "O mímico que se desinteressa pelos sentimentos humanos faz somente um teatro de movimentos", dizia o mestre. Nascido Marcel Mangel em Estrasburgo, na França, em 22 de Março de 1923, ele pertenceu a uma família judaica com ideais socialistas e diversos artistas, como músicos e dançarinos.

Aos 7 anos, o garoto já divertia os amigos da vizinhança. "Descobri que poderia fazer as pessoas rir e chorar sem falar", disse Marceau, em entrevista ao site Salon.com. Naquela época, não sabia que estava a fazer mímica - já que, nas brincadeiras, a ideia era somente imitar os seus ídolos do cinema mudo, como Charlie Chaplin. Em 1939, o jovem Marcel e a sua família tiveram de sair à pressa de casa no dia em que a França entrou na Segunda Guerra Mundial. O rapaz e o seu irmão mais velho, Alain, fugiram para Limoges. Para esconderem as origens, naqueles tempos de anti-semitismo, os irmãos mudaram o sobrenome para Marceau.

Em 1944, o pai de Marceau, um talhante, foi preso e levado para o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia, onde morreu. A mãe do artista foi para Perigueux, sul da França, com Alain e Marcel. Tempos depois, os irmãos fugiram para Paris. Marcel Marceau acabou por entrar, em 1946, para a Escola Charles Dullin de Artes Dramáticas. Foi lá que conheceu o seu mentor, o lendário Étienne Decroux (1898 - 1991). O professor ensinou ao jovem que havia uma arte chamada mímica - e que ele a praticava, sem saber disso, desde os tempos de diversão na infância. "És um mímico nato", disse o mestre ao pupilo, uma frase lembrada por Marceau na mesma entrevista à Salon.com.

Arte banalizada

As boas relações entre Decroux e Marceau, no entanto, não iriam durar muito tempo. O motivo? As escolhas artísticas do criador de Bip. Quem as explica melhor é a atriz, directora e professora Nadja Turenko, ex-aluna de Corinne Soum - professora de mímica tanto na escola de Marceau quanto na de Decroux. "Eles separaram-se a partir do momento em que Marceau resolveu fazer um resgate da pantomima clássica, do século 19, que é uma tradição europeia. Na pantomima, o gesto reproduz alguma coisa que não está ali. E há movimentos e números que são básicos: quando o Marceau juntava o polegar com o indicador e mexia os dedos, por exemplo, a plateia sabia que aquilo era um bicho voando."

Decroux, por sua vez, desenvolveu um trabalho hoje conhecido como mímica corporal dramática ou mímica moderna - que, entre outras características, permite que o actor emita sons e não tem um repertório corporal definido. Quando o então discípulo resolveu seguir um caminho próprio, claramente voltado para as massas, Decroux entendeu que Marceau estava a banalizar a arte da mímica. E nunca perdoou ao aluno.

Em 1947, Marcel Marceau começou a fazer sucesso como mímico. Nessa época, não só criou o seu personagem mais famoso, como começou a fazer participações em filmes - Les enfants du paradis foi o primeiro. Depois, vieram, entre outros, Barbarella (1968) e A última loucura de Mel Brooks (1976), em que, curiosamente, Marceau diz a única fala ("Não!"). Às primeiras apresentações na França, seguiram-se encenações na Itália, Suíça, Bélgica e Holanda. Única trupe de mímica no mundo nos anos 1950 e 1960, a Companhia Marcel Marceau actuou nos principais teatros do mundo. Em 1955, já tendo escrito milhares de números especiais para Bip, fez a primeira de muitas montagens nos Estados Unidos, mais precisamente na Broadway. O então pouco conhecido artista tornou-se um sucesso de público e crítica.

Clássico eterno

Apesar do reconhecimento que teve ao longo de seus mais de 60 anos de carreira e da noção que tinha de sua habilidade ("Há apenas um Marcel Marceau", costumava dizer), o artista tinha medo de que o seu método se desvanecesse depois de sua morte. "Ouvi dizer que sou um clássico. Mas o tempo passa tão depressa e as pessoas esquecem-se de tudo rapidamente. O que é importante é manter-se um clássico depois que a sua vida acaba. Uma forma de fazer isso acontecer é levar a mímica para cada vez mais jovens." Com esse intuito, Marceau fundou, em 1978, a Escola Internacional de Mimodrama de Paris, que até hoje recebe jovens de todas as nacionalidades, entre os 18 e os 26 anos.

Marceau era Embaixador da Boa Vontade das Nações Unidas para o Envelhecimento e recebeu diversos prémios, incluindo dois Emmy pelos seus programas de TV. Em 2005, aos 82 anos, realizou uma tourné de despedida pela América Latina, que o levou ao Brasil, a Cuba, à Colômbia e ao Chile.

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Neste dossier:

Dossier Marcel Marceau

O Esquerda.net dedica o seu dossier desta semana a Marcel Marceau, o genial mímico que morreu no último dia 22 de Setembro aos 84 anos.

Vídeo: O Tigre

Do espectáculo "Contos Fantásticos" (2004), dirigido por Marcel Marceau, assistido por Vallerie Boschenek. Com Gyöngyi Biro, Elena Serra, Sara Mangano, Angelique Petit, Maxime Nourissat, Pierre-Yves Massip, Julien Grange, Alexander Neander. De assinalar que Marcel Marceau, já com 81 anos, ainda se encontra em plena forma.

Vídeo: O domador de Leões

Filme de 1955: pantomina de um domador de leões                                                                                                               

Vídeo: Marcel Marceau e Michael Jackson

Neste vídeo, Marcel Marceau  ensaia os seus alunos no passo "Moonwalk", inventado por Michael Jackson inspirado na pantomina que o mímico francês usou em "The Silent Movie". Neste filme de Mel Brooks, Marceau aparece a caminhar para trás, como que se fosse empurrado pelo vento. Marceau explica como Jackson, admirador de Marceau, usa técnicas da mímica nos seus videoclips.

Vídeo: a famosa cena do filme de Mel Brooks

Nesta cena do filme "A última Loucura de Mel Brooks" (The Silent Movie) Marcel Marceau fala pela primeira e única vez - uma só palavra. É também nela que o mímico faz o famoso passo de andar para trás, como se estivesse a ser empurrado pelo vento, que inspirou Michael Jackson em Moonwalk.

Vídeo: O retrato de Marcel Marceau

Nesta entrevista, Marcel Marceau traça um curto perfil da sua vida e carreira, fala sobre a sua arte e deixa uma interrogação no final: "Às vezes sinto uma grande tristeza que me invade dizendo-me: 'que é que vai acontecer com este mundo? Conheceremos algum dia a paz eterna?'"

Poeta do invisível

Normalmente, quando se fala em mímica, a imagem que vem à cabeça é a de um actor ou uma atriz de rosto pintado de branco, que veste roupas listadas, calças largas e chapéu. O artista age em silêncio e, com gestos precisos, faz com que a audiência entenda perfeitamente o que ele cria em cena. A existência dessa caracterização e dessa técnica, que comove e influencia pessoas no mundo inteiro há 60 anos, deve-se ao trabalho do genial francês Marcel Marceau, que morreu no dia 22 de Setembro, aos 84 anos.

Há musicalidade até no silêncio

Nesta entrevista ao diário espanhol El Mundo, concedida em 1997, quando Marcel Marceau completava 50 anos de carreira, o genial mímico relata a única vez que encontrou Charlie Chaplin e afirma que a única coisa que não se pode exprimir sem palavras é a mentira: "O mímico tem de ser claro e legível. Não pode fazer armadilhas. Com as palavras pode-se esconder tudo. Pode-se fazer promessas que não vão ser cumpridas. A arte do mímico é o grito desgarrado da alma entre o bem e o mal, com a esperança de que o bem seja maioritário."

“Não é verdade que todos os momentos mais belos nos deixam sem palavras?”

"A mímica, assim como a música, não conhece fronteiras nem nacionalidades", "se a gargalhada e as lágrimas são características da humanidade, todas as culturas estão mergulhadas nesta disciplina", dizia Marcel Marceau.