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O direito à alimentação

A mensagem que os 600 delegados de movimentos sociais de todo o mundo mandaram durante o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar foi clara: é preciso dar um basta às políticas neoliberais para a produção agrícola mundial, barrando as ações das transnacionais na produção de alimentos. "O maior inimigo da soberania alimentar é o neoliberalismo, um modelo ideológico capitalista que destrói as economias locais, privatiza os recursos naturais e globaliza o comércio, colocando todas as economias locais nas mãos das transnacionais", disse Paul Nicholson, representante da Via Campesina no País Basco, em entrevista ao Brasil de Fato.

Como alternativa, as organizações sociais propõem o modelo da soberania alimentar, no qual a alimentação não é vista como uma forma de obter lucro, mas como um direito humano. "Antes de tudo, é um direito político, um direito dos povos de definirem suas políticas alimentares e agrícolas", resume Nicholson.

Respeito à natureza

O encontro ocorreu entre os dias 23 e 27 de Fevereiro na pequena cidade rural de Selingue, localizada a cerca de duas horas da capital do Mali, Bamako. Na abertura, agricultores, pescadores, camponeses, pastoralistas, indígenas e activistas deram os seus depoimentos. "Todos nós somos produtores de alimentos e as coisas que produzimos com nossas mãos revelam uma história de amor e respeito à natureza. Agora, temos que construir um movimento global com pessoas que produzem com as suas mãos e os seus corações", declarou o pescador norte-americano Jeremy Fisher, da Federação dos Pescadores da Costa Oeste (PCFAA).

O palestiniano Alidarwish Greenline também falou sobre a situação de seu povo. "Há 15 anos, 50% dos palestinianos foram expulsos das suas terras, e as suas casas e pertences foram queimados. Desde 2002, Israel tem feito um grande esforço para expulsar os outros 50% que restaram. Quando tiram os palestinianos de suas terras, destroem tudo para que não voltem. E quando os palestinianos respondem a isso, são chamados de terroristas", protestou.

Objectivos

Além de buscar articular e integrar movimentos sociais, estabelecendo alianças estratégicas, Nicholson explica que, diferentemente do Fórum Social Mundial, os participantes do Fórum pela Soberania Alimentar - baptizado de Nyeleni - tem como objectivo definir uma agenda de mobilizações em todos os continentes.

"Desde 1995 e 1996 começámos a desenvolver esse princípio, não só de forma conceitual, mas também por meio de uma estratégia de acção, tanto camponesas como com outros movimentos sociais. Em Nyeleni, temos uma visão de longo prazo, de novos horizontes, de construir objectivos e agenda de acção política para os anos seguintes. Aqui somos mais específicos, elaborando uma agenda política", explica Nicholson.

A metodologia do evento reuniu pequenos grupos de discussão divididos em sete temas: as políticas do comércio internacional e os mercados locais, conhecimento local e tecnologias, acesso e controle sobre os recursos naturais, o compartilhamento de recursos e direitos dos pescadores, conflitos e desastres, condições sociais e migração forçada e, por fim, modelos de produção. Todos foram discutidos levando-se em conta três questões básicas: pelo que lutamos? Contra quem lutamos e o que podemos fazer a respeito?

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Dois modelos em disputa no campo

 

Questão

Modelo Dominante Neoliberal

Modelo da Soberania Alimentar

Comércio

Livre comércio por meio de acordos bilaterais ou multilaterais arbitrados por organizações como a OMC

Alimentação e agricultura devem ser protegidos dos acordos comerciais

Prioridade da produção

Agroexportação

 

Alimentos apenas para os mercados locais e de acordo com a demanda

Preços


 

Aqueles ditados pelo mercado

 

Preços justos que cubram o preço da produção e que permitam aos agricultores viverem dignamente

Acesso aos mercados

Mercados externos

Acesso aos mercados locais

 

Subsídios

São proibidos nos países subsdesenvolvidos e permitidos nos EUA e União Europeia

Aqueles que não prejudicam outros países (via dumping) são permitidos

Ser capaz de produzir

Uma opções para os que são economicamente eficientes

Um direito das comunidades rurais

Fome (explicação)

Devido à baixa produtividade

Um problema decorrente da falta de acesso e má distribuição das riquezas

Alimento

Uma commodity. Na prática, isso significa comida contaminada (transgénicos), processada com muita gordura, açúcar e resíduos tóxicos (agrotóxicos, por exemplo)

Alimentar-se é um direito humano. Deve ser saudável, nutritivo, culturalmente apropriado, produzido localmente e ter um preço acessível

Segurança Alimentar

Alcançada pela importação de comida o mais barata possível

Um pressuposto, uso da agroecologia para a produção de alimentos

Controle sobre as fontes naturais

Passam para a mão da iniciativa privada

Deve pertencer às comunidades locais

Acesso à terra

Apenas por meio do mercado

Por meio de uma verdadeira reforma agrária. Sem acesso justo à terra, o resto não pode se concretizar

Sementes

Uma commoditty em potencial

Um património da humanidade desenvolvido por comunidades rurais e diferentes povos

Crédito rural e investimento

Por meio de bancos privados e corporações

Do sector público, para o financiamento da agricultura familiar

Dumping

Não é visto como um problema, algo inerente às regras do mercado

Deve ser proibido

Monopólio

Não é visto como um problema, algo inerente às regras do mercado


 

 

A raíz de muitos problemas. Também devem ser proibidos

Produção excedente

Não existe, por definição

Abaixa os preços e leva agricultores a falência, são necessárias políticas de controle da produção vinda dos EUA e União Europeia

Agricultores

Um anacronismo, vão desaparecer

Guardiões da cultura, dos recursos naturais e detentores de conhecimento

Um Outro Mundo Possível

Não há interesse em construí-lo

Sua existência é amplamente demonstrável

Transgênicos

A grande tendência

Nocivo para a saúde, logo, uma tecnologia desnecessária

Tecnologias agrícolas

Industriais, monoculturas com uso de química pesada e organismos geneticamente modificados

Agroecologica é sustentável

Fonte: Food First, www.foodfirst.org

Mali, um país em busca da soberania alimentar

A África também é paz e organização social. Em entrevista ao Brasil de Fato, Mamadou Goïta, um dos organizadores malienses do Fórum Mundial por Soberania Alimenta e integrante do Instituto de Pesquisa e Promoção de Alternativas de Desenvolvimento (Irpad), fala sobre a produção agrícola do seu país e mostra uma África organizada e em busca da sua própria democracia, contrapondo-se à imagem construída pelos média corporativos de um continente desmobilizado e sempre em conflitos e guerras civis.

Os meios de comunicação propagam a ideia de que a África não pode produzir alimentos porque não tem recursos naturais e devido às guerras...

Mamadou Goïta - Isso é um grande engano. As pessoas têm muitos preconceitos e falam de algo sem ter elementos objectivos. A África é um continente muito rico em termos de biodiversidade e tem um potencial amplo quando se fala de agricultura, cultivo de algodão e pesca, por exemplo. No caso de Mali, que é o caso de vários outros países do continente, temos 1,2 milhão de quilómetros de extensão e o terceiro maior rio da África, o Niger. Há muitas barragens nele e o nosso potencial de produção de arroz é amplo, apenas utilizando pequenas tecnologias que as pessoas aqui já manuseiam. Com isso, poderíamos abastecer 50% da procura da África Ocidental. Isso só para dar uma ideia do potencial do país. Somos auto-suficientes em produção de alimentos, com excepção dos períodos em que temos grandes secas. Este ano, por exemplo, tivemos um grande excedente na produção que pode até ser usado para o comércio local.

O Mali, por exemplo, investe muito também na produção de algodão. Éramos o maior produtor há dois anos atrás, com mais de 500 toneladas por ano. Mas para produzi-lo há um grande custo e não temos a tecnologia para transformá-lo industrialmente. Então, um dos problemas é: como transformar localmente nossas próprias matérias-primas? Ou seja, como dominar o processo de industrialização? Então quando dizem que África é guerra, África é seca, não é verdade porque, primeiro, há muitas Áfricas, há muitos países, com as suas particularidades. Agora estamos a tentar resolver os conflitos existentes. Países como a Libéria, que passou anos em guerra, a questão colocada agora é como reconstruir a nação que, em termos de agricultura, tem muito potencial também. Para mim, a África é também paz, representa movimentos sociais lutando pelos seus direitos e construindo a democracia nos seus países. No Mali, por exemplo, éramos o terceiro maior produtor de ouro. Mas agora, estamos a beneficiar-nos de apenas 20% do montante que esse comércio gera porque há corporações que vem aqui e tiram isso da população do Mali e levam para o Canadá, Estados Unidos e Europa.

O presidente do Mali, Alpha Oumar Konaré, assinou uma lei de soberania alimentar e esteve aqui, no Fórum, ontem. Qual é a situação política do país hoje?

Politicamente, temos paz e a democracia está a seguir seu caminho, apesar de não ser perfeito. Sabemos que quando a sociedade civil caminha para promover a democracia, então, podemos construí-la, claro que levando em conta as nossas tradições locais. O problema agora é: como as políticas públicas podem responder às necessidades da população? Na maioria dos países africanos, o debate é como estabelecer políticas coerentes com as nossas necessidades - e não de acordo com necessidades externas.

Como se dá o diálogo dos movimentos com o governo?

Há dialogo entre os tomadores de decisões e a sociedade civil e movimentos sociais, o que é muito importante, porque só com espaço para esse dialogo é que pode haver avanços. Isso é porque a nossa orientação agrícola, as nossas políticas agrícolas são novas desde Agosto de 2006, como resultado de uma luta dos movimentos sociais. E devido à nossa acção e ao envolvimento de alguns tomadores de decisões, conseguimos estabelecer essa lei por meio de um processo muito participativo, feito pelos pequenos produtores. Claro que ainda há outros pontos, por exemplo, necessidade de pesquisas na área agrícola. Temos que discutir quais, de que tipo e quais os meios para alcançar isso.

Quando falamos das áreas urbanas, agora estamos na luta contra os transgénicos. A nossa preocupação é como estabelecer uma política para as cidades que respeite a população. A lei (da soberania alimentar) é muito importante porque foi a primeira vez que no continente a questão foi reconhecida por um governo que incorporou esse conceito na legislação. Pressionando por isso a nível regional, talvez possamos levar as coisas para um nível continental.

O que mais se produz no Mali? A produção limita-se às regiões ribeirinhas do Rio Niger?

A região que está perto do rio é onde fica o nosso stock de produção em termos de algodão, arroz, batata, frutas (banana, mamão, laranja e maçã) e vegetais (mandioca, cará, beringela, cenoura, repolho). Daqui esses produtos são enviados a outras áreas do país.

Como têm respondido as corporações aos esforços do Mali para a construção da soberania alimentar?

Há agressões por parte das corporações, principalmente da Monsanto e da Syngenta, que têm interesse no nosso algodão, em fornecer o transgénico. Eles têm procurado subornar e financiar pesquisadores para fazê-los aceitar o algodão modificado. Agora, estamos a impulsionar um debate nacional sobre essa questão. Há um escritório dessas corporações aqui que têm feito lóbi para retirar a lei que proíbe a produção de algodão transgénico. Está claro para eles que uma das portas para o continente africano é o Mali, por isso temos que continuar a lutar. No final do ano passado, fizemos uma grande marcha para deixar claro que sabemos quem eles são e exactamente o que querem.

(...)

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O direito à alimentação

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Por Dafne Melo, enviada especial a Sélingué (Mali) pelo Brasil de Fato, 27/02/2007

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