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Imprensa, capitalismo ou a subtil contra-ofensiva conservadora

Comentando a presença de 3 milhões de pessoas na Marcha do Orgulho em S. Paulo, a generalidade da imprensa portuguesa referia a festa por oposição à presença de uma agenda reivindicativa. Nos breves espaços informativos que a notícia conquistou a imagem era o seu elemento mais nobre e o discurso em directo dos participantes (mas não organizadores do evento) justificava com naturalidade essa ausência da política. A notícia tornou-se relevante, não pela enorme massa humana que a concretizou nem nas condições específicas em que o fez, mas pelo facto de ter sido interpretada exclusivamente pelo seu lado comemorativo.

Artigo de João Carlos Louçã

 
 

Passando por cima do facto de também as comemorações serem momentos de posicionamento face ao mundo e às suas histórias que escolhemos evocar, ou ainda de que um acontecimento desta dimensão não se pode resumir a uma só motivação, esta interpretação manipuladora da realidade é evidentemente a contra-ofensiva conservadora aos ventos de liberdade que varreram as ruas de S. Paulo e se repetem periodicamente em tantas outras cidades pelo mundo.

A ocupação do espaço público, a celebração de identidades de resistência à opressão, a exuberância dos "amores que não se escondem" mais é, de alguma maneira, uma enorme conquista da humanidade. Conquista recente e longe da irreversibilidade. Conquista parcial porque em demasiados países do mundo a homossexualidade é crime, é punida e perseguida. Vitória dolorosa porque assente em gerações intermináveis de vítimas, entre as do passado e as que todos os dias se lhes juntam. Orgulho ainda porque a discriminação é hoje combatida em muito mais frentes e por muitas mais pessoas.

Mas o tratamento noticioso da Marcha de S. Paulo é só um sinal de uma questão permanente naquilo que é a percepção do movimento LGBT enquanto movimento social - o que no Estado Espanhol se começou a discutir como "peseta rosa" é nem mais nem menos do que os sintomas do súbito interesse do mercado capitalista por uma parte da população até então colocada à margem. A marginalização cultural ou a discriminação legal teriam assim uma outra face que era a da igualdade perante o mercado. É então criada a ficção de que os homossexuais seriam pessoas com poder económico acima da média - para o que contribuiria o facto de não terem famílias para sustentar. Em muitas cidades os circuitos das culturas gay e lésbica eram objecto de investimento em larga escala, criando serviços em bairros que aos poucos se converteram numa espécie de ilhas de tolerância perante os costumes e de concentração das ofertas para os interesses específicos dessa população LGBT com poder de compra.

E perante este fenómeno há sempre quem pretenda esvaziar este movimento social global e reduzir todas as suas motivações aos elementos de festividade e consumo. Por cá, tivemos mesmo um presidente de Câmara em Lisboa que em início de mandato resolveu promover em conjunto com poderosos agentes económicos  uma "Parada do Amor" ao mesmo tempo que assobiava para o lado ao apoio ao Arraial Pride da Ilga-Portugal . Em muitas cidades europeias este tipo de realizações são momentos de enorme confluência de pessoas e máquinas de realizar lucros fabulosos. Só é mesmo preciso o investimento na música e na cenografia, uma vez que a garantia de liberdade sexual é o enorme pressuposto mobilizador e está adquirido à partida. Também é preciso que não chova, como Santana Lopes deve estar bem lembrado.

Mesmo em Lisboa, onde se realizará no dia 23 o 10º Arraial Pride, é evidente que o seu crescente sucesso é também resultante da mobilização acrescida da sua componente comercial. E para a direita deste movimento este facto é o bastante para se colocarem numa espécie de limbo não-reivindicativo onde a política cede o lugar à comemoração e à festa. Mas é evidentemente errado querer separar política e festa. A festa só existe porque a discriminação social continua e a reivindicação da própria existência através da visibilidade persiste em ser um movimento de subversão. A diversidade das redes associativas LGBT em todo o mundo comprova a sua origem profunda no tecido social, com as enormes contradições deste mundo em que vivemos.

A apropriação capitalista de um segmento de mercado entre as pessoas de orientação fora da norma heterossexual diz mais deste sistema económico e do pragmatismo do dinheiro quando confrontado com o edifício de valores que o suportam, do que do movimento social que supostamente veio transformar. Este é obviamente diverso, em crescimento e conjugação com tantas outras causas pela igualdade e emancipação, com muito mais festas mas simultaneamente com muito maior capacidade de intervir na esfera pública e de reivindicar direitos. Por isso é que afirmar que o que se passou em S. Paulo é sintoma de despolitização ou de falta de agenda reivindicativa é voltar as costas a uma realidade muito mais complexa. Desde logo porque o Brasil é um país onde a homofobia mata diariamente (1) e os direitos civis da população LGBT estão a léguas de ser assegurados, como aliás em grande parte dos países do mundo. Todos podemos confundir os desejos com a realidade, negar as evidências e construir justificações para a domesticação da energia destas mudanças, mas a verdade é que a discriminação continua a existir, a mobilização social que se lhe opõe cresce e os instrumentos de acção política de que dispomos vão ganhando espaço de concretização efectiva na sociedade.

Outro exemplo bastante curioso foi a forma como Gisberta deixou de ser designada enquanto"travesti Gisberto" para passar a sê-lo pela sua verdadeira identidade de género. Há pouco mais de um ano o assassinato brutal de uma transsexual sem-abrigo no Porto, centrou justamente atenções e chocou muita gente. Nos primeiros dias a imprensa atribuiu à vítima nome e género masculino, para após levantar o primeiro véu desta mesma identidade (em grande medida pela pedagogia de várias associações LGBT) passar a tratar Gisberta pelo seu nome e pela sua verdadeira identidade. Ao ponto que já só mesmo a Igreja católica falava do "Gisberto" e, num supremo desvario, ter mantido esta designação até durante a missa do funeral. Mas já nesse momento e até hoje Gisberta era uma transsexual feminina perante o país, num exemplo de como também podemos esperar trabalhos equilibrados e isentos de preconceito por parte dos meios de comunicação.

(1) Em São Paulo, o aumento da visibilidade gay parece estar acompanhado do crescimento da homofobia. A cidade que possui a maior parada gay do mundo --no ano passado superou San Francisco (EUA) e Toronto (Canadá), com 1,5 milhão de pessoas-- continua líder no ranking de assassinatos de homossexuais. Foram 19 casos em 2004 (157 no Brasil inteiro).

João Carlos Louçã,  Junho de 2007

Sobre este tema aconselhamos também a  leitura do documento:

Apelo internacional à participação no "Bloque Alternativo" no Europride de Madrid, no próximo 30 de Junho de 2007.

(...)

Neste dossier:

Dossier LGBT: acabar com a homofobia

No mês em que por todo o mundo ocorrem manifestações da comunidade LGBT contra a homofobia, o Esquerda.net compilou vários textos sobre a temática.

Marcha do Orgulho LGBT anima Lisboa

No dia 23 de Junho realizou-se em Lisboa a oitava Marcha do Orgulho LGBT. Largas centenas de pessoas juntaram-se à Marcha, numa mancha arco-íris que encheu as ruas do Príncipe Real e, depois, da Baixa, até ao Terreiro do Paço.
A discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais e transgender continua a fazer-se sentir na sociedade portuguesa e na lei, apesar de Portugal ser o único país europeu cuja Constituição proíbe a discriminação com base na orientação sexual.

Marcha do orgulho gay: igualdade para todos

A oitava edição da Marcha do Orgulho Lésbico, Bissexual, Gay e Transgénero juntou no sábado centenas de pessoas em Lisboa, reivindicando a igualdade de direitos para os que têm diferentes orientações sexuais. Depois da leitura de um manifesto do movimento, feito pelas associações organizadoras, a marcha foi do Príncipe Real ao Rossio, ao som de palavras de ordem pela igualdade de direitos e do lema "igualdade para todos aqui e agora".
"Esta marcha é uma forma de intervir na sociedade, de fazer ouvir a voz das pessoas que se sentem discriminadas em função da sua orientação sexual, disse ao Esquerda.net Eduarda Ferreira, da associação Clube Safo.

Gisberta: chocados com o quê?

Este crime chocou o país? Parte dele. Mas só surpreende os ingénuos. Quem não tenha consciência do que é o sistema de (des)protecção de menores em Portugal; quem tenha su­bestimado e desvalorizado o grau de preconceito e violência quotidiana - incluindo física - a que estão sujeit@s milhares de gays, lésbicas e trans; quem não conheça a brutal realidade portuguesa das exclusões que a vítima acumulava: imigrante, sem-abrigo, transexual, toxicodependente, trabalhadora do sexo, seropositiva e tuberculosa.

A Batalha de StoneWall: marco do movimento LGBT

Em Nova York, no dia 28 de Junho de 1969 o bar Stonewall-Inn foi local de mais uma rusga policial - mais uma vez sob a alegação de falta de licença para a venda de bebidas - e todos os travestis que se encontravam no bar foram presos. Mas, ao contrário das outras vezes, as pessoas resolveram resistir, em solidariedade com os presos. O clima foi ficando cada vez mais tenso. Gays e lésbicas de um lado, os polícias do outro e os travestis presos. Depois de dois dias de confrontos intensos, a polícia desistiu. Esta data fica na história do movimento LGBT como o dia do Orgulho Gay, motivando, em todos os inícios de Verão, paradas e marchas pelo mundo inteiro. 

Homossexualidade é crime em 75 países

A homossexualidade é ainda punida por lei em cerca de 75 Estados. Em muitos países, a condenação pode ir além de dez anos de prisão; por vezes, a lei prevê a prisão perpétua e, nalgumas nações, a pena de morte tem sido efectivamente aplicada.

Relatório denuncia homofobia da polícia nos EUA

O relatório "Stonewall, continuar a exigir respeito" revela os abusos policiais contra lésbicas, gays, bissexuais e transgenders nos Estados Unidos. Apresentado no México pela Amnistia Internacional, o documento é o produto de um trabalho de investigação realizado, entre 2003 e 2005, em quatro cidades muito distintas e geograficamente diversas nos Estados Unidos: Chicago (Ilinois), Los Angeles (Califórnia), Nova York (Nova York) e San Antonio (Texas).
Uma proporção significativa das denúncias de abusos contra lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgenders tinham como protagonistas indivíduos pertencentes a grupos raciais ou étnicos minoritários. A idade, o nível socio-económico e a condição de imigrante também contribuem para aumentar o risco de sofrer abusos por parte dos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei.

O movimento LGBT em Portugal: datas e factos

Neste artigo, preparado por Bruno Maia e João Carlos Louçã, é possível aceder às datas mais importantes para o movimento LGBT em Portugal nos últimos 100 anos. Só em 1982 se dá a descriminalização da homossexualidade e é em 1999 que Lei das Uniões de Facto passa a aplicar-se também aos casais homossexuais, apesar de ainda carecer de regulamentação. Pelo meio, ficam inúmeras episódios de homofobia e discriminação, mas também a criação de movimentos que vieram dar visibilidade à luta LGBT. 

LGBT em Portugal: a maioria continua no armário

Uma distância gigantesca separa uma minoria sobretudo gay, urbana, informada, consumista e hedonista, relativamente integrada e emancipada - nem sempre mais assumida - com um nível e contexto de vida que permite viver "homossexualmente", mas que é em grande medida conservadora, indiferente ao movimento, pouco solidária e preconceituosa. E temos no reverso da medalha uma maioria obscura de LGBT's sem condições para uma emancipação ou para qualquer tipo de visibilidade, em que continuam a misturar-se gays e lésbicas que ocultam a sua orientação sexual por trás de uma aparência hetero, homens casados que engatam no IP5 ou nos jardins das cidades, jovens torturados entre o preconceito e uma identidade que não querem reconhecer em si mesmos.

A representação das minorias sexuais nos media

A homossexualidade é representada de forma variada. É definida por laços de afectividade, valorizando a esfera amorosa, e caracterizando os homossexuais por uma vulgaridade não distintiva, produzindo um efeito normalizador e não estigmatizante. Mas também é representada pelo lado folclórico, exibicionista da sexualidade, do corpo e da indiferenciação de género- assimilando as questões de género à homossexualidade, sem as tratar na sua especificidade.

Uma agenda LGBT para Lisboa

É sobretudo fundamental que a Câmara Municipal de Lisboa assuma como sua a luta pela igualdade que tem vindo a ser feita sobretudo pelas Associações. A homofobia é um problema social que exige uma resposta da sociedade como um todo - e dos poderes públicos em particular.
Embora se estime que cerca de 10% da população seja LGBT, é comum que nas grandes cidades esta percentagem seja mais elevada pelo que é uma responsabilidade acrescida da CML fazer grande parte das suas cidadãs e dos seus cidadãos sentirem-se parte integrante da cidade.
Esta visão deverá pois reflectir-se em todos os campos de actuação da CML, desde a formação de funcionárias/os e professoras/es das escolas primárias, até ao atendimento em todos os serviços, passando pelo investimento nas actividades de promoção da comunidade e da cultura LGBT, sempre com o objectivo de garantir a coesão e integração sociais.

Uma agenda LGBT para a esquerda

Ao contrário de propostas de igualdade formal, como a do alargamento do direito ao casamento, que embora enfrentando resistências sérias na sociedade, são na verdade facilmente integráveis pelo sistema e, de alguma forma, até modeladoras das relações homossexuais a um modelo heterossexual, logo, aceitável, a emancipação real da comunidade LGBT, em todas as suas frentes, não é integrável quer pelo poder, quer pelas forças conservadoras.

Iniciativas e propostas do Bloco de Esquerda

O Bloco de Esquerda tem vindo a demarcar-se dos restantes partidos como um movimento moder­no e defensor de uma democracia aprofundada. O seu programa resulta da aliança entre a luta pelo fim das desigualdades sociais e económicas - agravadas pelas políticas neo-liberais - e as lutas pelo fim das desigualdades identitárias - agravadas pelo neo-conservadorismo e pelo novo moralismo reinante. Em suma, o Bloco é um movimento que luta pela igualdade ao mesmo tempo que luta pela diversidade.

Links úteis pela defesa dos direitos LGBT

Aceda aqui aos links para várias organizações, a nível nacional e internacional, que lutam contra a discriminação de que é alvo a comunidade LGBT. Em Portugal, destaque para a Associação Ilga Portugal, as Panteras Rosa, o Clube Safo e a Associação Não te Prives. A nível internacional, não deixe de aceder ao site da Campanha contra a homofobia na Polónia, um país cujo actual Governo tem atacado intensamente todos os LGBT.
Leia mais para aceder aos respectivos links.

Imprensa, capitalismo ou a subtil contra-ofensiva conservadora

Comentando a presença de 3 milhões de pessoas na Marcha do Orgulho em S. Paulo, a generalidade da imprensa portuguesa referia a festa por oposição à presença de uma agenda reivindicativa. Nos breves espaços informativos que a notícia conquistou a imagem era o seu elemento mais nobre e o discurso em directo dos participantes (mas não organizadores do evento) justificava com naturalidade essa ausência da política. A notícia tornou-se relevante, não pela enorme massa humana que a concretizou nem nas condições específicas em que o fez, mas pelo facto de ter sido interpretada exclusivamente pelo seu lado comemorativo.

Homossexuais na Palestina: No meio do fogo cruzado

Alguns gays palestinianos, na sua vontade de obter permissões de residência em Israel para fugir de uma sociedade fortemente homofóbica, passaram a prestar serviços à potência ocupante; em muitos outros casos, no entanto, a iniciativa partiu dos serviços secretos israelitas que, quando descobriam a homossexualidade de algum palestiniano, lhe faziam uma cruel chantagem: em troca de não o "tirar do armário", o que levaria a uma pressão social insuportável, a vítima deveria prestar serviços de espionagem para Israel. Por toda esta rede de factores, a equação "um gay é um traidor à Palestina" ficou lema: no início da segunda Intifada houve alguns espancamentos de gays palestinianos pelos seus conterrâneos.

A homofobia no Iraque ocupado

A ocupação do Iraque pelos Estados Unidos é vista pelos sectores gays ocidentais como algo positivo para as liberdades sexuais naquele país. Os homossexuais de Bagdad riem-se desta percepção e, embora o regime "baazista" tivesse muitos defeitos em matéria de direitos LGBT, eles asseguram que agora a sua situação é pior.
Foi a publicação das fotografias das torturas e das humilhações da prisão de Abu Ghraib que provocou uma verdadeira crise para a população LGBT iraquiana.