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A grande recessão e o risco da deflação
Krugman tornou-se por isso o (provavelmente único) beneficiário do crash bolsista de 2007 a 2008 e da recessão que se lhe segue: tendo visto os seus prognósticos mais sombrios confirmados pela crise, o Prémio Nobel foi-lhe atribuído mais pela crítica do que pelo contributo teórico (aliás bastante convencional dentro dos quadros da economia ortodoxa). E tinha sem dúvida razão: a expansão da economia americana, que é ainda a economia dominante no mundo, foi alimentada ao longo dos últimos anos pelo endividamento.
No gráfico 1 destaca-se esta evolução. Como se vê, a dívida das famílias quase triplica, a dívida da economia não-financeira duplica e a dívida do sector financeiro multiplica-se por dez desde 1960. A espiral do endividamento suportou o consumo e o nível de vida nos EUA e tornou-se agora o detonador da crise.
Gráfico 1. Dívida privada (em % do PIB dos EUA)
Esta espiral de endividamento permitiu uma enorme acumulação de capital fictício e, portanto, beneficiou directamente o sector financeiro, que construiu novos impérios. O Gráfico 2 revela a extensão desta mudança, ainda para o caso dos EUA.
Como se verifica, a evolução dos lucros ultrapassa e em muito o crescimento do produto. Mas o que mais impressiona é como dispararam os lucros do sector financeiro, sugando parte importante do valor produzido na economia (e criando valor fictício, sem contrapartida em bens, serviços ou informação e conhecimento produzidos).
Gráfico 2. Evolução dos lucros no sector financeiro e não-financeiro (em % do PIB dos EUA, 1970 = 100)
F: Economic Report of the President, 2008.
Esta espiral especulativa não podia durar. E, de facto, começou a tremer quando se verificou que o crédito subprime, isto é o crédito hipotecário a pessoas pobres, não podia ser pago. Em consequência, começou um efeito dominó devastador, visto que parte dos "derivados" se baseava em activos sem valor real e portanto incobráveis. Assim, descobriu-se que as instituições financeiras vendiam gato por lebre. A primeira a cair foi o Banco Lehmann Brothers, o quarto maior banco de investimento no mundo. E depois foram nacionalizados 60 bancos, porque os governos da União Europeia e os EUA se concertaram para financiar a fundo perdido os prejuízos e tentar salvar o capital financeiro.
Mas há duas características importantes desta crise que não têm resposta nestes desesperados planos de salvamento.
A primeira é a sobreprodução. Esta é uma crise típica de sobreprodução, como se verifica claramente no exemplo da indústria automóvel. Mas só há sobreprodução porque se conjugam duas decisões estratégicas erradas: produzir demasiados bens supérfluos e, sobretudo, reduzir o valor do salário para aumentar a taxa de lucro. A diminuição da procura efectiva, isto é do poder de compra dos trabalhadores, por via do aumento do desemprego estrutural, das deslocalizações e da austeridade, tem agora o reverso da medalha. No Gráfico 3 mostro como se foram reduzindo os salários como parte do rendimento nacional e do PIB dos EUA. O mesmo se passou no mundo inteiro.
Gráfico 3. Salários em % do PIB dos EUA
F: Economic Report of the President, 2008
A consequência é a crise de sobreprodução e de falta de procura efectiva. Ora, a recessão - de que a fagulha inicial foi o crash das Bolsas, mas que se desenvolve por causa da sobreprodução - agrava ainda mais estas dificuldades, porque vai provocar um grande aumento do desemprego. Os mais pobres ficam mais pobres, os mais vulneráveis ficam mais vulneráveis.
A tentativa do Governo Sócrates de contrabandear no Código do Trabalho a extensão do período experimental para 6 meses, acabando assim com os contratos a prazo para criar uma figura de exploração ainda mais barata e com menos direitos, é uma expressão grave destas ameaças.
Mas existe ainda uma segunda ameaça, que é a deflação. Com a recessão, e trata-se de uma recessão somente comparável à mais grave de sempre, a de 1929, o risco actual é a deflação, isto é a redução dos preços em níveis absolutos. Essa situação implica dois dramas: o primeiro é o desemprego, porque muito mais empresas fecharão se assim for; e o segundo é o sobreendividamento das pessoas. Quem está endividado é a vítima mais atingida pela deflação, visto que os juros nunca são negativos e, se os preços baixam (e os salários também) o diferencial em relação ao juro vai aumentar.
A deflação é uma tragédia raramente conhecida nas economias capitalistas desenvolvidas. Houve um episódio desse tipo no Japão nos anos 90 do século passado e a recessão durou uma década. Se a recessão actual provocar deflação, estaremos perante uma crise social como nunca conhecemos nas nossas vidas.
Francisco Louçã
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