Está aqui
Gisberta: chocados com o quê?
Este crime chocou o país? Parte dele. Mas só surpreende os ingénuos. Quem não tenha consciência do que é o sistema de (des)protecção de menores em Portugal; quem tenha subestimado e desvalorizado o grau de preconceito e violência quotidiana - incluindo física - a que estão sujeit@s milhares de gays, lésbicas e trans; quem não conheça a brutal realidade portuguesa das exclusões que a vítima acumulava: imigrante, sem-abrigo, transexual, toxicodependente, trabalhadora do sexo, seropositiva e tuberculosa.
Excerto de artigo de Sérgio Vitorino, publicado na revista "Combate".
Este assassinato sofreu um claro défice de expressão de indignação, quer popular, quer associativa, quer mediática, sobretudo quando consideradas as tentativas de branqueamento do crime e de culpabilização da vítima que se seguiram, ou quando comparadas as reacções com as de outros crimes de ódio.
Atente-se no olhar mediático: total ignorância dos conceitos em causa, omissão da imagem (desumanização) da vítima, desculpabilização do acto através da concentração do choque no factor da idade dos seus perpetradores, em prejuízo da indignação pela morte provocada. Basta contabilizar os "pobres crianças" confrontados com os "pobre Gisberta".
Nada de novo. Há menos de dez anos os media não tinham ultrapassado a mera criminalização/ medicalização/ caricaturização discursiva da homossexualidade, e ainda hoje, vacilam sem rumo nem reflexão editorial entre a abordagem sociológica e política da realidade LGBT e da sua discriminação - como queremos - e o estereótipo ignorante e abusivo - quando não incitamento discriminatório - que não sabe nem quer saber, por exemplo, a diferença entre uma transexual e um travesti - não é tudo a mesma coisa? - ou mesmo entre uma pessoa com desejo homossexual e a realidade de uma mulher que nasceu com um apêndice desajustado e supérfluo entre as pernas e que se viu livre dele independentemente de o seu desejo ser hetero, homossexual ou outra coisa menos definível.
Atente-se também no comportamento da hierarquia católica, responsável pela instituição de menores: não se limita a lavar as mãos do assunto, e tenta culpabilizar vergonhosamente a vítima insinuando nas televisões que esta teria molestado uma criança da instituição. Perante isto, ausência de reacção pública, e mesmo a recusa de certos activistas LGBT em confrontar a igreja com os factos. É suprema ironia que os autores do crime sejam na sua maioria "jovens" institucionalizados numa instituição católica, estando o país a viver o rescaldo interminável da revelação do processo Casa Pia e tendo este contribuído como contribuiu para fazer recuar muito do progresso que havia sido feito no afastamento da homossexualidade de uma ideia de predação sexual.
Ficou por perceber pelo movimento LGBT no rescaldo deste assassinato a necessidade de devolver esta bola, denunciando o mau-trato a menores que representa em si, este sistema de institucionalização. Meros armazéns sobrelotados de crianças e jovens provindos de famílias desfavorecidas e/ ou violentas, sem o acompanhamento devido, misturados com jovens condenados por crimes pelos tribunais de menores (apesar de a Lei prever separação), contextos de abandono e violência institucionalizados pelo Estado, ou - sempre a redução do défice público - abandonados à igreja e à educação (tolerante, como sabemos) que esta pratica. Uma cumplicidade que permite adiar qualquer reforma séria deste sistema.
Choca que pessoas tão jovens sejam capazes de matar? Mas se foi assim que as educou e (des)integrou a sociedade, em contextos de injustiça e de ódio...
Fugir a caracterizar como tal um crime de ódio com o argumento da tenra idade dos agressores é tão absurdo como o oportunismo da direita que aproveitou para voltar a defender o baixar da idade da responsabilização criminal. Se neste segundo caso se olham as consequências da desigualdade, da discriminação e da violência sem olhar às suas causas, no primeiro caso ignora-se a natureza do crime. Ora, pouco importa que preconceitos mais ou menos difusos têm na cabeça pessoas tão novas quando escolhem entre os mais fracos dos fracos uma vítima de agressão. A sociedade portuguesa discrimina, são esses os valores que maioritariamente transmite e reproduz, e é de ódio que se trata.
Daí que sendo absurda a via repressiva que quer começar a criminalizar os jovens mais cedo, não deixa de ser evidente que os crimes de ódio têm que ser legalmente penalizados, que o Estado (esse promotor-mor de desigualdade) deve ser forçado a legislar e a educar contra as discriminações, e que, neste caso, deve ser julgado quem tem idade para isso.
Mas alterar o Código Penal no sentido anunciado poucos dias depois da descoberta do corpo, o de incluir o preconceito contra a orientação sexual como factor de agravamento penal em crimes de sangue, é perder a oportunidade pela qual clama um caso que não seria contemplado nas alterações legislativas propostas. A penalização da homofobia e da lesbofobia corresponde a uma reivindicação antiga do movimento LGBT. Mas aceitar que essa penalização abranja apenas estes crimes mais violentos e não contemple a discriminação de género (mesmo na Constituição o termo utilizado é "sexo", e não "género"), é ignorar a morte de Gisberta, transexual e heterossexual.
Daqui se depreende que não têm abrangência a este caso os termos "homofobia" ou "orientação sexual". Parte do associativismo LGBT, porém, insistiu na utilização exclusiva do termo homofobia com duas ordens de argumentos: que quando uma transexual é atacada, é porque é confundida com "os paneleiros", porque na cabeça das pessoas preconceituosas é tudo o mesmo, e assim seria na daqueles jovens; que "ninguém entenderia o termo transfobia". O segundo argumento é cómico:, ainda há dois anos os mesmos activistas o aplicavam precisamente ao termo "homofobia", preferindo usar termos como "discriminação contra LGBT", enquanto as panteras insistiam em impor a palavra no léxico mediático nacional.
O primeiro argumento é mais grave, porque tendo um fundo de verdade - @s trans são vítimas de homofobia porque a diferença de género é confundida com a diferença de orientação sexual - ignora a especificidade trans, abdica de esclarecer e reflecte as hierarquias existentes entre L's, G's, B's e T's e diferentes agendas associativas. A população trans, na sociedade como na comunidade LGBT, é das mais fragilizadas e vulneráveis à exclusão e à discriminação, excluída do mercado de trabalho, da possibilidade de alugar casa, empurrada maioritariamente para o mundo do espectáculo ou para o da prostituição. Casos de degradação como o de Gisberta não são incomuns. Desde muito cedo, o próprio activismo trans em Portugal esteve entregue a si mesmo nas margens do associativismo LGB (e T?). Se em vez de uma transexual tivesse sido assassinado um homem gay, aposto que a expressão da indignação, na sociedade e no movimento, teria sido superior e mais consequente.
É de espantar? Temos um movimento maioritariamente feito por mulheres mas dominado e representado maioritariamente por homens, relativamente monocolor no que toca aos grupos sexuais, sociais, étnicos que tenta representar, frequentemente classista, com um olhar excessivamente masculino e uma ordem de prioridades predominantemente representante dos interesses de uma minoria gay mainstream, por sinal a que aparenta ser menos solidária com a causa e a mais discriminatória relativamente aos/às trans. (...)
Sabemos hoje que as ameaças e agressões contra as transexuais que se prostituíam com Gisberta na Avenida Gonçalo Cristóvão no Porto, aumentaram exponencialmente após o crime. Que para parte do movimento isto não seja importante, não ajude a perceber a necessidade de defender este grupo, e que se pense que se responde a um assassinato como a qualquer banal situação discriminatória, com um mero comunicado e vamos para casa de consciência limpa, chega a ser dramático. As contradições evidenciadas pelo crime contra a vida de Gisberta caracterizam o movimento em Portugal e o perfil da discriminação como ela se exerce hoje. Contradições que contaminam a "comunidade" - atenção às aspas - LGBT e o próprio associativismo, e fazem provavelmente do momento actual aquele em que se tornam mais dramáticas as opções tácticas, estratégicas e de conteúdo de um movimento social como temos poucos.
Sérgio Vitorino, Abril de 2006
Adicionar novo comentário