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A Educação na era da Troika

A redução brutal do número de professores nas escolas, a mutação dos Contratos Simples para um puro modelo de cheque-ensino e a subversão da rede escolar introduzindo um conceito de concorrência entre escolas públicas e privadas ao invés da complementaridade até hoje em vigor são alguns dos indicadores do que é a Educação na Era da Troika.
Foto de Paulete Matos.

Comecemos pelo indicador mais imediato e revelador do que é a Educação na Era da Troika: o número de professores. Os professores contratados da escola pública são um bom indicador de como o governo gostaria de tratar toda a função pública, se o deixassem. No ano letivo 2010/2011, havia 139,8 mil professores no sistema, dos quais 36 mil professores contratados. No ano letivo seguinte, o primeiro ano letivo sujeito ao memorando da Troika, o número de professores contratados desceu para 24,2 mil e, no ano letivo seguinte, 2012-2013, desceu novamente para 15,2 mil professores. Chegamos assim ao terceiro ano letivo do memorando da troika, 2013-2014, com cerca de 7600 professores contratados, tendo o número total de professores reduzido para menos de 100 mil (entre 2010 e 2013 registaram-se 11895 aposentações com apenas 400 novos professores vinculados).

Em apenas três anos, Nuno Crato conseguiu despedir 30 mil professores contratados. É a máquina de desemprego mais eficaz deste governo. Neste contexto, a Prova de Avaliação de Conhecimentos revela-se apenas como um irritante extra relativamente lateral para Nuno Crato. Não o impediu antes nem é condição no futuro para o aprofundamento da degradação da Escola Pública e é a ela que o Bloco respondeu com propostas concretas para o Orçamento de Estado de 2014.

A redução brutal de professores nas escolas destruiu qualquer possibilidade de um ensino próximo dos alunos permitindo acompanhamento de cada um segundo as suas necessidades. O Bloco de Esquerda manteve e reapresentou por isso a sua proposta para a realização de um concurso extraordinário de vinculação de professores do pré-escolar, básico e secundário.

Cheque-ensino e Concorrência escolar

A Alteração do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo proposto por Nuno Crato é o projeto-piloto do Guião de Paulo Portas. Prevê duas grandes alterações: a mutação dos Contratos Simples para um puro modelo de cheque-ensino e a subversão da rede escolar introduzindo um conceito de concorrência entre escolas públicas e privadas ao invés da complementaridade até hoje em vigor.

É saudável relembrar que os contratos de associação surgem como elemento complementar da rede pública, como forma transitória de suprir as deficiências territoriais da oferta pública de ensino num momento do pós-ditadura em que o país não tinha infraestruturas para as necessidades da população. Ficou assim consagrado na constituição que os contratos a estabelecer com escolas privadas tinham caráter meramente supletivo, transitório, formulação que, independentemente de posteriores alterações, se manteve como o princípio central da organização da rede escolar. Assim estava previsto no número 1 do artigo 12º do antigo Estatuto do Ensino Privado e Cooperativo, ao estabelecer prioritariamente que “O Estado celebrará contratos com escolas particulares que, integrando-se nos objetivos do sistema educativo, se localizem em áreas carenciadas de escolas públicas”. Desta forma, o caráter supletivo dos contratos de associação era o principal fator para determinar a necessidade de estabelecer ou não estes contratos.

O novo estatuto introduz uma nova formulação. No artigo 10.º - Princípios da contratação, lê-se no n.º 4: “Na celebração destes contratos, o Estado tem em conta as necessidades existentes e a qualidade da oferta, salvaguardando o princípio da concorrência”. Isto não significa apenas que as escolas privadas terão liberdade de se instalar em zonas onde há oferta pública. É bastante mais sofisticado. Estabelece que, em caso de dúvida, prevalece a oferta privada. Não é difícil perceber porquê. Ao favorecer um critério que faz tábua rasa de todos os princípios obrigatórios para a escola pública, quem sairá por cima será sempre a escola privada. Se a equidade e universalidade do ensino obriga a escola pública a integrar todos os alunos em idade de escolaridade obrigatória, será impossível competir com uma escola vizinha que seleciona apenas quem quer, apenas os melhores e mais favorecidos que, previsivelmente, terão melhores resultados. O princípio da Concorrência limita-se a consagrar uma monumental parceria público-privado na Educação onde, tal como está inscrito nas boas práticas desta modalidade, quem ganha é sempre o privado.

O cheque-ensino introduz um mecanismo crucial para o sucesso desta estratégia. É a ferramenta que permite às escolas privadas absorver todos os estudantes que quiser e desejar sem qualquer prejuízo, com lucro garantido. O novo estatuto reserva para uma portaria futura a regulamentação dos Contratos Simples de Apoio à Família, mas o artigo 12º do novo estatuto é suficientemente claro: “os contratos simples de apoio à família têm por objetivo permitir condições de frequência em escolas do ensino particular e cooperativo, por parte dos alunos do ensino básico e do ensino secundário”. Ou seja, é absolutamente irrelevante para a celebração de um contrato destes se existe ou não existe um escola pública que possa receber o aluno. Pelo contrário, a fuga para o ensino privado é incentivada pelo Estado. Estes contratos estabelecem em pleno um regime de “direito preferencial” de escolha dos alunos por parte das escolas privadas, onde só falta as escolas públicas pedirem parecer prévio às suas concorrentes sobre os alunos que podem ou não podem aceitar.

A estas duas alterações fundamentais respondeu o Bloco de Esquerda com duas propostas: a revogação do cheque-ensino; e a racionalização da rede escolar, cessando qualquer contrato com instituições de ensino particular e cooperativo onde exista oferta da rede pública.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na FLUL, Investigador do Centro de Estudos de Teatro/Museu Nacional do Teatro e da Dança /ARTHE, bolseiro da FCT
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