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E o futuro do Haiti?

O Palácio e outros órgãos do Governo caíram. Não se têm mais todos os funcionários, os prédios, os equipamentos. O Senado veio abaixo justamente quando estava cheio. Um intelectual haitiano nos disse que tudo do Estado foi destruído e a burguesia (que sabemos, em geral, está por trás dos Estados) também foi.

As Forças Armadas e a Polícia do país não desapareceram “em meio ao caos provocado pelo terremoto”, como disse um repórter digital… As Forças Armadas não sumiram, foram desmanchadas no começo da década de 90, após decisão do presidente na época, Aristide. E a Polícia local é a única força armada que vimos nas ruas nos primeiros dias após o desastre.

As forças que a princípio sumiram aos olhos da população são as estrangeiras, que ocupam o país. Nesse sábado, andando de carro em vias relativamente livres, foi surpreendente ver dezenas de veículos da ONU parados no quartel do Brasil. Será que depois virá a comunidade internacional, resgatar o último sobrevivente, aparecer na mídia e dizer de boca cheia que ajudou o povo haitiano?

O que me assustou não é bem um “despreparo” da Minustah, como disseram por aí, mas a impressão de que há, ou houve, um desfoco, uma falta de prioridade. Os EUA estão a menos de 2h daqui, mas, pelo que vimos, demorou 4 dias para a ONU começar a lançar comida de helicópteros, o que obviamente reflete na afobação parcial da população para receber comida.

Parece que está se constatando publicamente o fracasso da Minustah (que está há 6 anos nesse Haiti) pois, realmente podemos ter dúvida do que ela deixou a esse povo: incentivo à bases, como agricultura e escolas, para o próprio país se reerguer, não foi…E agora, nessa hora emergencial, também tivemos dúvida da presença efetiva dela. Parece-me que a Minustah foi para o Haiti não apenas para oferecer comida, segurança, etc, mas para inserir no país numa lógica que não essencialmente é a da ajuda, da prevenção e da estabilização. Tudo isso são apenas dúvidas que me farão reparar bem na intensificação do controle social que vai se instaurar e num número alto de mortos que pode existir mesmo depois do Haiti se recuperar. Hoje alguma autoridade já decretou que haverá toque de recolher, às 18h, como se fome tivesse horário pra vir e como se várias pessoas já não estivessem morando na rua.

Para além da ajuda, parece-me que se instaura muito mais fortemente uma lógica do capitalismo internacional, que aliás, é desigual e instável por si só. Quantas empresas e organizações internacionais não ganham muito no Haiti? Quantos dólares a mais elas não ganham ao trabalharem nas “zonas vermelhas” da cidade, consideradas assim pela ONU (mesmo quando são, no quesito violência, lugares comparáveis à diversas regiões do Brasil)? Tal lógica também esta presente em diversas outras “missões de paz”, em ajudas “humanitárias” pós-catástrofes, em políticas económicas de países ricos em relação a países pobres e em desenvolvimento.

Os EUA estão mandando mais de 5 mil marines (dizem até 10 mil), obviamente muitos deles armados, dizendo que a reconstrução que buscam é a longo prazo… Também já têm o aeroporto em seu controle. Por que não priorizar 5 mil médicos, ou 5 mil litros de diesel, ou 5 mil quilos a mais de comida? Ou então 5 mil milhões de dólares pra pagar uma fração do prejuízo que o fracasso do neoliberalismo, liderado pelos EUA, causou ao Haiti? Ou até para compensar o protecionismo de países desenvolvidos em relação a quem, economicamente, já está de guarda abaixada faz tempo?

Às vezes, penso que tantos mil soldados só podem vir pra cá para caçar, quem sabe grupos locais (os quais, onde não há presença do Estado, são naturalmente o poder existente). Pra quem quiser ajudar o Haiti, será que existe algo mais importante com que se gastar esses recursos do que investir na soberania alimentar, no combate à sede, à falta de moradia, etc, as quais já afetavam a esmagadora maioria da população antes do desastre? Desastre natural, aliás, que se agrava, na verdade, por conta de um desastre precedente, o social.

Num momento em que minha experiência no Haiti me mostrou que a natureza de muitas ocupações, “ajudas” e relações internacionais não me agradam, não posso estar optimista com o futuro político do Haiti, apesar de acreditar muito no povo haitiano. Fico ainda mais preocupado sabendo que quem esta liderando tal movimentação é obviamente os EUA, o qual nas últimas décadas foi uma das “potências” que pressionaram infinitos países e exerceram muito dessa forma, eu diria, autoritária e doentia de se relacionar com o outro. Como disse Omar, qualquer valor monetário dado agora ao Haiti “humanitariamente” é pouco, e é, na verdade, o pagamento mínimo de uma dívida, que, ainda por cima, estão pagando de forma errada. E o Brasil parece não ter aprendido a lição que sofreu na própria pele: hoje é um dos protagonistas da intensificação desses princípios perversos e que geram desigualdade no Haiti. Aliás, já anunciou que ficará por aqui mais 5 anos.

Apoio-me nas palavras de um dominicano, que comentou algo como: “Disseram que o terremoto foi um castigo para o povo haitiano. Foi, na verdade, um castigo para aqueles que passaram séculos tratando-os com indiferença”. Pior, por mais que muitos haitianos gostem ainda hoje do Brasil (até porque quando qualquer um dá um prato de comida a alguém faminto não é muito difícil ganhar o mínimo da simpatia deste) não posso dizer que nós, brasileiros, não somos parte dessa patota de pessoas que devem ser responsabilizadas pelo que acontece no Haiti.

Publicado no blogue La Citadelle, de investigadores da Universidade de Campinas no Haiti.

Sobre o/a autor(a)

Antropólogo Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp
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