Breve história do movimento estudantil

Não é errado afirmar-se que o movimento estudantil chileno tem sido o mais importante da América Latina nos últimos cinquenta anos. Por Álvaro Ramis

18 de setembro 2011 - 2:25
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O Chile tem uma história comprida mas uma memória curta. E sem memória é difícil saber em que sentido avançar.



Para o movimento estudantil manter a lembrança é difícil, pela sua constante renovação de quadros e dirigentes. Esta característica, que lhe aporta uma clara vitalidade democrática, pode ser também um problema se se deixa de ter em conta que, as transformações que se promovem hoje, já foram pensadas e discutidas sob outros contextos pelas gerações anteriores. Recuperar e dar continuidade a esta memória permite destacar um movimento que tem sido central na nossa história recente. Não é errado afirmar-se que o movimento estudantil chileno tem sido o mais importante da América Latina nos últimos cinquenta anos. E não porque os estudantes do nosso país sejam mais conscientes ou activos que os do resto do continente. Simplesmente, porque, em nenhum outro país, se viveu com tanto dramatismo a decomposição e mercantilização de um sistema educativo que chegou a ser um dos melhores da região. Se revíssemos estes cinquenta anos, deveríamos identificar as seguintes etapas:



1961-1973: a reforma universitária foi um processo que exigiu o fortalecimento das federações universitárias e o consolidar de alianças com partidos, académicos e outros sectores sociais através do movimento “Universidade para todos”. O processo acelerou a partir de 1967 e desembocou num novo modelo baseado nos critérios de ampla cobertura, gratuitidade e uma profunda democratização da gestão educativa. O sistema educativo chileno alcançou o maior nível de qualidade da sua história, de acordo com todos os parâmetros e padrões da época.



1973-1982: a repressão golpista custa a vida a centenas de estudantes, professores e académicos. Perdem-se quase todas as conquistas do período anterior, especialmente desde 1981 quando entra em vigor a Constituição de 1980. As aprendizagens acumuladas permitem lutas parciais, mas a resistência expressa-se, prioritariamente, mediante a acção cultural em movimentos como a ACU, da Universidade do Chile e no âmbito da defesa dos direitos humanos.



1983-1989: reconstrução e democratização das federações de estudantes, tanto no âmbito universitário quanto no do secundário, que se expressam através da FESES (Federación de Estudiantes Secundarios de Santiago). A agenda concentra-se quase exclusivamente na democratização do país e em tentar deter as políticas privatizadoras, conseguindo alguns êxitos como a destituição do reitor designado José Luís Federici e do seu “plano de racionalização universitária”. O movimento é fortemente reprimido, mas conseguedar forma às expectativas democratizadoras da cidadania, especialmente dos sectores médios e intelectuais. Contudo, a centralidade que adquire a luta política nacional impede uma reflexão específica sobre as políticas educacionais que começam a desenvolver-se. Uma carência que se evidenciará na etapa seguinte.



1990-1995: a transição pactuada produz desconcerto no movimento. Por um lado, a forte identificação dos dirigentes estudantis com os partidos da Concertação leva-os a moderar excessivamente as suas petições. No vínculo partidário, armadilha a acção política e coopta os temas de debate, que acabam por se trivializar. Produzem-se escândalos de corrupção que marcam profundamente a representatividade e a participação estudantil, o que leva, em muitos casos, à reformulação de muitas das federações de estudantes e a um desprestígio das juventudes dos partidos políticos.



1996-2005: a reconstrução do movimento estudantil, em resistência às políticas da Concertação, começa com a refundação da FECH (Federación de Estudiantes de la Universidad de Chile) em 1996, que causou um ciclo de fortes e massivas mobilizações entre 1997 e 1999. Logra-se quebrar o ciclo de dependência e cooptação do período anterior e o movimento adquire autonomia e capacidade de apresentar propostas. Confrontam-se activamente as políticas privatizadoras com resultados ambíguos: desde o ano 2000 conseguem-se maiores recursos para as universidades públicas, garante-se um marco básico de autonomia institucional e instâncias de participação delimitadas, mas o modelo, em termos gerais não se altera. Os universitários procuram construir uma agenda única a nível nacional, mas não se consegue articular as sensibilidades políticas. Do ponto de vista actual, apelava-se a um programa que hoje consideraríamos mínimo: taxas alfandegárias diferenciadas; manter o crédito fiscal para evitar o crédito bancário; reconhecimento da participação institucional dos estudantes e académicos nas universidades e uma agenda excessivamente centrada na defesa das universidades do Conselho de Reitores, mais especificamente, das universidades públicas. Em relação às privadas, não havia propostas nem coordenação. Tampouco existiam vínculos significativos com outros sectores sociais, como os estudantes secundários e os professores, porque não existia uma reflexão sobre o sistema educativo no seu conjunto. Em síntese, o movimento estudantil recuperou a sua autonomia e começou uma fase activa de resistência no seu campo específico, mas chegou a um limite na medida em que os seus objectivos políticos lhe exigiam alianças mais amplas. Necesitava o que György Lukács chamava “perspectiva de totalidade”.



2006-2011: a revolução dos secundários em 2006 conseguiu incorporar esta perspectiva de totalidade, ao massificar uma luta além do campo universitário. A partir desse momento começou a falar-se da LOCE (Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza), da Constituição de 80, das desigualdades, da gratuitidade. Não porque antes não se tivesse debatido nas universidades, senão porque, desde esse ano, a discussão saiu à rua, conseguiu-se que se entendesse nas famílias, conseguiu-se criar o vínculo entre o mal-estar privado e o mal-estar público, pela falta de resposta do sistema político perante uma educação cara e de baixa qualidade.

E assim, chegámos ao presente, no qual há a agradecer a personagens como Piñera, Hinzpeter e Lavín por terem contribuído para a eliminação de todas as cortinas de fumo que a Concertação tinha instalado para fragmentar e sectorizar as exigências estudantis. Se bem que seja impossível prever o futuro, creio que, à luz de tantas aprendizagens acumuladas, de tanta luta e de tanto sacrifício não cabe mais que uma aposta. Será amanha ou será em dez anos, mas a este movimento só o espera uma coisa: a vitória.

Álvaro Ramis Ex-presidente da Federação de Estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Santiago (1998).

Publicado em “Punto Final”, edição Nº 740, 19 de agosto, 2011

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Tradução de Cristina Barros para o Esquerda.net

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