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Ajuda humanitária ou ocupação militar?

QUANDO O FURACÃO Katrina atingiu Nova Orleães em 2005, George W. Bush revelou um descuido doloroso pelas vítimas Negras do desastre.

Quando a sua administração finalmente deu resposta, enviou a Guarda Nacional e armou o pessoal Blackwater para impor a ordem, em vez de dar prioridade ao fornecimento de alimentos, abrigo e água potável. As palavras de Kanye West durante um Concerto da NBC a favor das vítimas do Furacão "George Bush não se preocupa pelo povo Negro " - foram logo comprovadas.

Na superfície, a resposta da administração Obama ao terramoto horrendo que atingiu o Haiti na semana passada não parece muito diferente. "Dei ordens à minha administração para responder com um esforço rápido, coordenado e enérgico para salvar vidas, " declarou Obama. "O povo do Haiti terá o apoio total dos Estados Unidos no esforço urgente para resgatar aqueles que se encontram presos debaixo do entulho e fornecer apoio humanitário - comida, água e medicamentos - que os haitianos precisarão nos próximos dias. "

As suas palavras foram um contraste total para os desvarios do direito racista. Rush Limbaugh declarou que o discurso de Obama foi uma tentativa para ganhar o apoio "tanto da comunidade mulata como negra neste país, " e que " já doámos para o Haiti. Chama-se a declaração de impostos dos Estados Unidos. "Escrevendo no New York Times, o cronista conservador David Brooks descartou a ideia de que este apoio possa ajudar o Haiti nesta crise - porque a cultura do Haiti é "mais resistente ao progresso do que outras."

Em comparação com tais afirmações, a resposta compreensiva de Obama e as promessas da ajuda podem parecer apenas decentes. Mas na semana após o terramoto, ficou claro que os Estados Unidos não estão a seguir uma política humanitária.

Embora seja uma oponente à administração Obama, a conservadora Heritage Foundation descreveu os objectivos que orientam a política dos Estados Unidos no Haiti:

A resposta dos Estados Unidos ao trágico terramoto de Haiti oferece oportunidades para reconfigurar o governo longo e disfuncional assim como a economia de Haiti e melhorar a imagem pública dos Estados Unidos na região.

Estando no terreno, os militares dos Estados Unidos podem interromper os voos nocturnos de cocaína para Haiti e República Dominicana desde a costa venezuelana e, também, contrariar os esforços contínuos do Presidente Venezuelano Hugo Chávez para desestabilizar a ilha de Hispaniola. Esta presença militar dos Estados Unidos, que deve igualmente incluir um grande contingente de activos de Guarda Costeira dos Estados Unidos, também pode prevenir qualquer movimento amplo de haitianos de tentarem introduzir-se nos Estados Unidos ilegalmente em embarcações precárias.

Entretanto, os Estados Unidos devem estar preparados para insistir que o governo de Haiti trabalhe estreitamente com eles para assegurar que a corrupção não afecte a ajuda humanitária que chega ao Haiti. As reformas a longo prazo da democracia haitiana e a sua economia são também abaladas.

Apesar de politicamente incorrecto - pois o artigo foi rapidamente retirado do website da Heritage Foundation - isto descreve, de facto, a política aplicada por Barack Obama

Se a administração Obama perseguisse uma política humanitária no Haiti, não teria designado George Bush para se juntar ao antigo Presidente Bill Clinton na coordenação da angariação de fundos para assistência em situações de catástrofe.

Não só Bush falhou espectacularmente com as vítimas do Furacão Katrina, como a sua administração orquestrou uma campanha de desestabilização política contra o governo democraticamente eleito de Aristide Jean-Bertrand no Haiti. Bush impôs sanções ao país que minaram a presidência de Aristide e empobreceram o povo. Naquele momento, Os Estados Unidos apoiaram um golpe direitista que derrubou o governo em 2004.

Nomear Bush para coordenar a ajuda ao Haiti parece-se com a colocação de Nero como responsável dos Bombeiros.

Há portanto uma discrepância entre as palavras de Obama "total apoio" e a pechincha que a sua administração planeia gastar para responder à crise - apenas 100 milhões de dólares. Como Bill Quigley, director oficial do Centro de Direitos Constitucionais, escreveu, "um casal de Kentucky ganhou 128 milhões de dólares numa lotaria de Powerball no dia 24 de Dezembro de 2009. A nação mais rica da história do mundo oferece o dinheiro de Powerball a um vizinho com dezenas de milhares de mortes? "

Além disso, uma semana após o desastre, enquanto funcionários dos Estados Unidos, Americanos privilegiados e os haitianos ricos receberam um apoio rápido, a ajuda prometida não conseguiu chegar à maioria do povo haitiano.

Numa crise, onde as primeiras 48 horas são decisivas para salvar a vida das pessoas, as Nações Unidas - e os Estados Unidos especialmente - não conseguiram chegar, nem por perto, às necessidades dos 3 milhões de pessoas atingida pelo terramoto.

Cada minuto que a ajuda se atrasa, mais pessoas morrem de inanição, desidratação, danos e doenças - e no entanto até Segunda-feira, a ONU só planeou distribuir comida e água a 95.000 pessoas.

Aproximadamente 1.5 milhão de pessoas estão sem abrigo e a dormir nas ruas, cerca de 200.000 morreram e, a cada minuto que passa, o desastre torna-se pior. Porque é que os Estados Unidos não podem apressar a ajuda ao Haiti? Porque é que os helicópteros americanos e os aviões de transporte demoraram tanto nas ajudas iniciais?

Os Estados Unidos e a ONU disseram que os danos no aeroporto de Haiti, no porto e nos caminhos impediu a chegada de médicos, enfermeiras, comida, água e equipas de socorro. Mas os Estados Unidos parecem sempre encontrar caminhos à volta de tais obstáculos quando se trata de invadir países como o Iraque e o Afeganistão. Existem claramente meios para ajudar rapidamente um país a uma hora de distância da Flórida.

PORTANTO a acção de emergência dos Estados Unidos não conseguiu cumprir a sua missão? A verdade é que a acção de assistência aos pobres em situações de catástrofe não é a missão no Haiti, tal como não foi a prioridade em Nova Orleães ou em qualquer outro desastre.

Em vez de apressar ajuda para os pobre de Haiti, a administração Obama preparou uma ocupação militar, declarando que as forças armadas são necessárias para controlar o que eles esperaram ser gente negra em fúria.

A cobertura dos meios de comunicação corporativa passou da sua compaixão inicial com as vítimas do desastre para rapidamente produzir histórias de pânico sobre a pilhagem. " Saqueadores esvaziaram lojas devastadas e dezenas de milhares de sobreviventes esperam desesperadamente comida e assistência médica, " declarou a Reuters. "Centenas de vagabundos e saqueadores enxamearam-se por cima de lojas devastadas na parte central da cidade de Port-au-Prince, levando mercadorias e lutando entre eles. "

Por outras palavras, os meios de comunicação aumentaram alguns conflitos isolados e projectaram-nos a implicação que Haiti pobre é uma ameaça violenta - e um verdadeiro obstáculo para os esforços humanitários.

Essas histórias de pânico por sua vez justificaram a não entrega de ajuda. O escritor Nelson Valdes informou:

As Nações Unidas e as autoridades dos Estados Unidos no terreno estão a dizer aos que querem directamente oferecer ajuda para não o fazerem porque poderiam ser atacados por "esfomeados " Dois aviões de carga dos Médicos sem Fronteiras foram forçados a aterrar na República Dominicana porque, em Port-au-Prince, os bens têm de ser acompanhados por escoltas militares dos Estados Unidos, segundo as ordens dos Estados Unidos.

Quando o Secretário da Defesa, Robert Gates, foi questionado sobre por que razão os Estados Unidos não usaram os seus aviões de transporte C130 para lançar provisões sobre Port-au-Prince, respondeu "parece-me que os aprovisionamentos aéreos simplesmente conduziriam a levantamentos da população. "
Naturalmente, o caso é precisamente o oposto. A população provocará distúrbios porque precisa de comida e de água.
A verdadeira situação é bastante diferente. Como o autor Richard Seymour escreveu:

O facto notável, pacientemente relatado por observadores no terreno, é que o Haiti não está regido pela anarquia, «pela lei da multidão», pela matança em massa ou outra coisa do género. Não houve, provavelmente, nenhuns crimes mais violentos este fim-de-semana, e certamente menos do que em algumas cidades americanas. Em vez disso, enquanto a ajuda é impedida, os haitianos cooperaram para juntar esforços de resgate e administrar o apoio sem a ajuda de trabalhadores humanitários.

O Presidente venezuelano Hugo Chávez descreve justamente a intervenção militar de Obama como sendo "a ocupação disfarçada do Haiti ". Os Estados Unidos tomaram o controlo do aeroporto principal de Haiti e do porto marítimo, e estão no processo de colocar 10.000 tropas dos Estados Unidos para ajudar as 9.000 tropas da ONU que já ocupam a ilha. A metade dos soldados policiará Port-au-Prince e a outra metade será colocada em navios militares que rodeiam a ilha.

Num artigo destinado a apoiar esta ocupação, a revista Time possivelmente de uma forma involuntária revelou a natureza colonial da operação. Está escrito "o Haiti, para todas as intenções e objectivos, tornou-se o 51º estado às 16h53. Na terça-feira a seguir ao terramoto mortal. Se não é um estado, então pelo menos será uma ala do estado. "

Os Estados Unidos estão a utilizar a sua posição poderosa para impor o seu controlo ao país e impedir os esforços humanitários, desviando os aviões dos Médicos sem Fronteiras, do governo mexicano e da Comunidade Caraíba e Mercado Comum. Jarry Emmanuel, o oficial de logística aérea do Programa Alimentar Mundial, queixou-se, "há 200 voos que entram e saem cada dia, que é um número incrível para um país como o Haiti. Mas a maior parte desses voos são para os militares dos Estados Unidos. As suas prioridades são controlar o país. "

:Num relatório vídeo atordoante a partir de Port-au-Prince, um repórter da Al Jazeera disse:
Aqui, por enquanto, a maior parte dos haitianos viram pouca ajuda humanitária. O que eles viram foram armas, muitas armas. Transportes blindados cruzam as ruas. Os soldados da ONU não estão aqui para ajudar a resgatar as pessoas debaixo do entulho. Dizem estar aqui para fazer cumprir a lei.

Isto é o que a maior parte da presença da ONU parece de facto ser nas ruas de Port-au-Prince: homens em uniforme, que conduzem velozmente veículos, transportando armas. À entrada do aeroporto da cidade, onde a maior parte da ajuda entra, há raiva e frustração. As provisões muito necessárias de água e comida estão no interior, e os haitianos estão na rua.

"Essas armas que eles trazem, " [diz um haitiano não identificado], "são os instrumentos da morte. Não os queremos; não precisamos deles. Somos um povo traumatizado. O que queremos da comunidade internacional é a ajuda técnica. Acção, não palavras. "

ENQUANTO A RAIVA entre haitianos ferve lentamente frente à falta de verdadeiro apoio, é apenas uma questão de tempo antes dos Estados Unidos, pesadamente armados, e as forças da ONU dispararem e matarem haitianos inocentes.

Já, na Quarta-feira pela tarde, as Notícias de CBS informaram, "hoje, um caos controlado levou à confrontação perto do aeroporto em Port-au-Prince, quando os defensores do mundo da ONU foram ordenados a limpar a rua cheia de homens haitianos que procuravam emprego. O batalhão composto por forças jordanas, paquistanesas e indianas não sabia falar nem crioulo, inglês ou francês. Falou com cassetetes e balas de borracha. Pelo menos uma bala de borracha foi vista a ser disparada na multidão. Ninguém foi seriamente magoado. "

Os barcos dos Estados Unidos estão no processo de rodear a ilha. Alguns fornecerão hospitais flutuantes. Mas também estão lá para prevenir um êxodo de refugiados a partir do Haiti.
Sobre alguma pressão, Obama concedeu a Posição Protegida Temporária a refugiados haitianos actualmente no U.S. - mas só durante 18 meses. Ao mesmo tempo, o Secretário de Segurança da Pátria, Janet Napolitano, anunciou que qualquer haitiano que tente introduzir-se nos Estados Unidos será deportado para o Haiti.

A administração Obama já está a coordenar planos de reestruturação da sociedade haitiana - no interesse do capital internacional. Está a implementar o que o autor Naomi Klein chama "Doutrina de Choque " - quando os poderes capitalistas usam as catástrofes naturais ou económicas para impor programas neoliberais, tais como a abertura de mercados nacionais a corporações multinacionais, a privatização de companhias estatais e cortes no salário mínimo.

O enviado especial da ONU no Haiti, Bill Clinton, trabalhou muito para implementar tais propostas antes da crise. Delineou negócios com companhias de cruzeiros para aportarem na costa norte de Haiti, e promoveu a reconstrução da indústria têxtil haitiana.

Agora, Obama, Clinton e Bush irão impor mais reformas neoliberais. " Para já, o Fundo Monetário Internacional alargou o empréstimo a 100 milhões de dólares ao Haiti durante a crise, e todo o dinheiro vem com as respectivas amarras. Como Richard Kim escreveu no Nation:

O novo empréstimo foi feito através da facilidade de extensão de crédito do Fundo Monetário Internacional, ao qual o Haiti já tem 165 milhões de dólares em dívida. Os activistas para o alívio de dívidas dizem-me que esses empréstimos foram feitos com condições, incluindo o aumento do preço da electricidade, o não aumento de salários a todos os funcionários públicos excepto nos salários mínimos, e mantendo a inflação baixa. Eles dizem que os novos empréstimos imporiam essas mesmas condições. Por outras palavras, diante deste último drama, o Fundo Monetário Internacional ainda está a utilizar a crise e a dívida como meio de acção para implementar reformas neoliberais.

Enquanto os Estados Unidos enviam soldados para policiar o Haiti em vez de fornecer ajuda humanitária, haitianos nos Estados Unidos, activistas de solidariedade com Haiti e organizações mobilizam-se para ir ao encontro das necessidades dos pobres de Haiti - e ajudá-los a tomar o controlo da sua sociedade. Num exemplo poderoso, o Comité de Organização de Enfermeiras Nacional está no processo de mobilizar 7.000 enfermeiras dos Estados Unidos para apresentar-se no Haiti e prestar assistência médica.

Enquanto os activistas continuam a doar dinheiro, as organizações como o Fundo de Apoio ao Haiti e Parceiros na Saúde que aspiram em dar poder às instituições do povo haitiano, devemos fazer vários exigências à administração Obama.

Primeiro, devemos exigir que Obama pare imediatamente a ocupação militar do Haiti e, em vez disso, inunde o país com médicos, enfermeiras, comida, água e máquinas de construção. Os soldados armados só piorarão a situação.

Em segundo lugar, os Estados Unidos também devem terminar com a prossecução do exílio de Aristide Jean-Bertrand e a proibição do seu partido, Fanmi Lavalas, em participar nas eleições. Os haitianos, não os Estados Unidos, devem ter o direito de determinar o seu governo.

Em terceiro lugar, devemos exigir que os Estados Unidos, os outros países e as instituições financeiras internacionais cancelem a dívida do Haiti, para que o dinheiro da ajuda enviado para o Haiti seja empregue na comida e na reconstrução, não no pagamento de dívidas.

E devemos mobilizar-nos para que Obama alargue indefinidamente a Posição Protegida Temporária aos haitianos nos U.S. - e abra as fronteiras a qualquer haitiano que realmente abandone o seu país.
Só ao mobilizarmo-nos a favor dessas exigências podemos parar os Estados Unidos de impor com a ponta das armas a sua Doutrina de Choque no Haiti.

19 de Janeiro de 2010

Publicado no Socialist Worker

Tradução de Ana da Palma

Sobre o/a autor(a)

Jornalista
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