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“Afirmação de um direito de dignidade, de autonomia e de liberdade pessoal”
Deve existir em Portugal legislação que regulamente a morte assistida, como já acontece em alguns países? Porquê?
A lei portuguesa em vigor pune com pena de prisão até 3 anos o profissional de saúde que auxilie ativamente quem lhe pedir para pôr termo ao seu sofrimento atroz pondo fim ao que o/a próprio/a já não considera ser uma vida minimamente digna mas apenas a sobrevivência de um corpo. Esta solução legal revela-se cruel diante da realidade do sofrimento de alguém que não tem outro horizonte que não seja o da perpetuação e agravamento desse sofrimento, mesmo que disfarçado por sedação e inconsciência. Mais que tudo, importa reconhecer na lei o direito de todos/as de decidirem livremente que, em termos da dignidade que exigem para toda a sua vida, chegou o momento do fim e o direito dos/as médicos de responderem 'sim' ou de responderem 'não' ao pedido de ajuda para concretizar essa decisão, sem estarem sujeitos/as a pena de prisão.
A aposta na rede de cuidados paliativos e um eficaz controlo da dor não esgotariam a necessidade de legislar nesse sentido?
A prestação de cuidados paliativos de qualidade é um direito que tem que ter expressão numa rede nacional pública, incluída no Serviço Nacional de Saúde com cobertura universal. Lamentavelmente, iniciativas legislativas no passado recente dirigidas à instalação de uma tal rede foram reprovadas por muitos dos que agora contrapõem, de modo pouco sério, cuidados paliativos ao direito a morrer com auxílio médico. Mas, além disso, um olhar sério sobre esta questão manda que se reconheça que os cuidados paliativos não dão resposta cabal a muitas situações de fim de vida com sofrimento atroz nem dão resposta a quem tomou, em liberdade e em consciência, a decisão de não se submeter a um fim de vida vegetativo envolto em doses maciças de sedativos e de corticosteroides.
Antes de avançar com um debate sobre esta matéria não faria sentido priorizar o investimento na rede de cuidados paliativos?
Por aquilo que acabei de referir, não há nenhuma razão séria para fazer depender o debate sobre o direito à morte medicamente assistida do funcionamento ótimo de uma rede nacional de cuidados paliativos no quadro do Serviço Nacional de Saúde. Essa rede é necessária, é mesmo fundamental, mas não é sério colocar as duas hipóteses em alternativa. Uma não exclui a outra. Defender um serviço público ou um negócio privado não pode ser causa para negar um direito fundamental de dignidade seja a quem for.
O Manifesto pelo direito a morrer com dignidade foi subscrito por mais de cem personalidades de vários quadrantes da sociedade portuguesa e a petição pela despenalização da morte assistida já reúne mais de 7500 assinaturas. Considera que este é um sinal de que as pessoas sentem necessidade de debater este assunto?
Devemos à coragem do movimento extraordinariamente plural que lançou o Manifesto pelo direito a morrer com dignidade a quebra de um tabu que persistia há tempo demais na sociedade portuguesa. O eco desse manifesto foi de grande dimensão e a grande adesão social à petição pública entretanto aberta à subscrição dá conta disso. Ficou aberto um debate que tem vindo a ser feito, quase sempre, com rigor e serenidade, ainda que a tentação de trazer à superfície fantasmas e outros bloqueamentos emerja de quando em vez. Sendo um problema que é especialmente sensível para o universo dos profissionais de saúde, trata-se de uma realidade em que é a cidadania democrática, como um todo, que está em causa. É preciso que este debate se faça de forma muito participada e que todos, incluindo os partidos políticos, assumam as suas responsabilidades para com uma sociedade com pluralidade de crenças e de visões da vida e da morte. O que está em causa é a tolerância que deve ser chave de regulação numa sociedade assim, onde não pode haver lugar ao arremesso de uma crença contra as outras ou à tomada de visões da vida como reféns por uma outra que se dá a si mesma o direito de se impor sobre as demais.
É favorável a um referendo sobre a despenalização da morte assistida?
A enorme adesão, social e culturalmente muito diversa, ao manifesto pelo direito a morrer com dignidade e a tão ampla subscrição pública da petição entretanto surgida fazem crer que, se houvesse um referendo, a vitória do reconhecimento da morte medicamente assistida seria clara. Ainda assim, porque não se trata de um campeonato de trivialidades mas da afirmação de um direito de dignidade, de autonomia e de liberdade pessoal, a realização de um referendo é inadequada. A liberdade e a dignidade de cada um/a não se referendam, reconhecem-se ou não se reconhecem na lei.
Há quem conteste a legitimidade do Parlamento legislar sobre esta maneira em virtude dos programas eleitorais dos partidos não incluírem a eutanásia. Mesmo assim, o Bloco mantém a intenção de avançar? E quando?
O Bloco não mudou o seu programa, apenas apresentou um manifesto eleitoral com a síntese das suas propostas políticas mais relevantes adequadas ao foco central do que de mais essencial estava em disputa nas eleições de outubro. No seu programa, o Bloco mantém a necessidade de reconhecer a todos/as o direito de decidir ter chegado o momento em que ainda é possível preservar um fim de vida com condições de dignidade e o direito dos/as médicos/as a responderem afirmativamente ao pedido nesse sentido feito em liberdade e consciência sem incorrerem em crime punível com pena de prisão.
Face ao intenso debate aberto pelo manifesto em favor do direito a morrer com dignidade, o Bloco entendeu clarificar, sem hesitações, a sua posição: apresentaremos um Projeto de Lei que consagre o reconhecimento desse direito. Não temos nisso urgência mas não permitiremos que o assunto continue eternamente adiado. Agora é o tempo de todos/as debaterem, nos mais diversos contextos, esta questão importante. O tabu está quebrado e esse é o passo mais importante de todos. Amadurecido o debate, os partidos terão que assumir as suas responsabilidades. O Bloco fá-lo-á.
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