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2008, o ano em que o planeta se revelou finito

O brusco aumento da procura de petróleo da parte de mercados emergentes, como a Índia e China, a especulação dos mercados financeiros e a progressiva escassez do petróleo e dos restantes combustíveis primários provocaram uma subida acentuada do preço do crude para preços record, seguida de uma descida brusca provocada pela crise financeira. Um processo semelhante ocorreu com os preços dos cereais e seus derivados, tendo-se agravado o problema neste caso com a quebra verificada no volume de colheitas agrícolas nos últimos dois anos e o aumento da percentagem relativa de solos dedicados à produção de biocombustíveis. Estas oscilações de preço tiveram consequências reais, provocando revoltas, falências, desemprego que resultaram em mortes directas e indirectas destes acontecimentos.

Desde os séculos XVII e XVIII, grande parte do pensamento económico foi orientado pelos escritos de John Locke, de Thomas Hobbes ou de Adam Smith, que simplificavam ou davam pouca importância à escassez ou ao limite dos principais recursos naturais. Na prática, os contemporâneos destes filósofos consideravam quase todos os principais recursos como sendo infinitos ou exploráveis indefinidamente. A explosão demográfica e a exploração intensiva dos principais recursos naturais que ocorreu durante século XX vieram revelar que alguns dos principais recursos naturais, como o petróleo, tinham os dias contados. Ainda assim os alertas lançados sortiram pouco efeito e foi preciso esperar por 2008 para que o cidadão comum percebesse finalmente que o modelo de sociedade dominante estava a pôr em perigo a sua própria segurança alimentar e energética. A emaranhada teia que liga as cadeias de exploração, produção, comercialização e consumo dos produtos de primeira necessidade está sujeita a processos estatísticos complexos de difícil compreensão para o produtor ou o consumidor individual que se encontra no seu canto do mundo e que tem uma perspectiva do problema limitada ao horizonte da sua região ou do seu país. Deste modo, um produtor ou um consumidor que esteja genuinamente convencido que a sua actividade não tem qualquer efeito nocivo poderá estar a contribuir sem saber para uma catástrofe humanitária noutro ponto do planeta. É aqui que falha, em particular a filosofia de John Locke. Segundo John Locke, a natureza não tem qualquer valor até ser transformada pelo trabalho humano para satisfazer as necessidades do homem. No entanto, Locke ressalvava que a exploração de recursos naturais poderia continuar indefinidamente desde que existissem em quantidade e qualidade para todos. Para além de sabermos hoje que a natureza não transformada pode ter um papel importantíssimo para a sobrevivência do homem (os pulmões da Amazónia ou das florestas do Canadá e da Sibéria, os gigantescos reservatórios de CO2 que são os nossos oceanos, etc.), sabemos também que nem sempre quem explora um recurso tem a percepção exacta de que pode estar a comprometer o acesso a esse recurso por parte de outros indivíduos noutra parte do mundo ou por parte das gerações seguintes.

As sociedades de produção e consumo massificado em que nos tornámos precisam de generalizar conceitos como o princípio da precaução da UE que protegem consumidores e produtores da incerteza resultante da massificação de novas actividades económicas e precisam sobretudo de se tornar em verdadeiras sociedades baseadas no conhecimento, em que o conhecimento científico seja devidamente considerado e respeitado pelo poder político e pelos diversos agentes económicos. O resultado desse trabalho científico mostra hoje que o modelo de vida das sociedades ditas ocidentais não é decalcável para o resto dos habitantes do planeta, nem para as gerações seguintes.

A encruzilhada entre o aumento do consumo energético do planeta, a progressiva escassez das reservas de combustíveis primários e o aquecimento global provocado pela emissão de gases de efeito de estufa deverá obrigar a uma séria reflexão sobre o nosso modo de vida, sobre a forma intensiva como produzimos e consumimos. A médio prazo será necessário encontrar novas formas de produção de energia em larga escala não dependentes de combustíveis primários com reservas finitas. Será por isso urgente apostar na investigação de novas tecnologias, como o projecto ITER de fusão nuclear, que poderá ser a futura energia de produção em larga escala, limpa e sustentável que substituirá definitivamente os combustíveis primários. Enquanto essas tecnologias não chegam será necessário massificar tanto quanto possível a produção de energia geotérmica, eólica, solar, das marés, das ondas, etc., transformando a habitação e o transporte para o seu consumo em larga escala (ler proposta de Jeremy Rifkin).

A produção de alimentos deverá cada vez mais aderir a métodos de produção sustentável que não esgotem os solos ou os recursos marinhos e deverá ser menos orientada para a exploração animal que requer a produção de grandes quantidades de cereais e um elevado consumo de água, requisitos que poderão ser fatais nas zonas menos férteis do mundo. A introdução de novas tecnologias e de novos produtos químicos na produção de alimentos deverá estar sujeita ao princípio da precaução para garantir a segurança de consumidores, de produtores e dos ecossistemas e responder a novos desafios como o sério declínio da taxa de natalidade nas sociedades mais desenvolvidas.

A nossa segurança alimentar e energética vai requerer uma transformação radical da sociedade, em particular a mudança de indicadores de desenvolvimento. Indicadores baseados essencialmente na produção, como o PIB, deverão ter um peso menor e indicadores dependentes da qualidade de vida, da sustentabilidade da actividade humana e da preservação do ambiente deverão ter um peso bem mais importante nas sociedades futuras. Produzir menos, para ganhar menos e viver melhor, poderá ser o mote das futuras gerações.

Rui Curado Silva, investigador no Departamento de Física da Universidade de Coimbra.

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Neste dossier:

Temas que marcaram 2008

Neste dossier, doze textos sobre alguns temas que marcaram 2008.

Desfecho da Era do Petróleo

2008 termina com alguns recordes históricos, foi o ano em que explodiu a maior recessão das últimas décadas, em que se agravou dramaticamente a crise alimentar que deixa milhões de pessoas sem o alimento mínimo para a sua subsistência e o ano em que as tempestades decorrentes das alterações do clima se mostraram mais devastadoras, provocando os maiores custos em vidas e bens. Texto de Alda Macedo

Depois de Correia de Campos, mudou alguma coisa para tudo ficar na mesma

O ano de 2008 fica marcado pela demissão de Correia de Campos, esgotado e derrotado politicamente quer pela ampla movimentação popular contra a política de encerramento de serviços do SNS, quer pela contestação conduzida pelas forças de esquerda à estratégia privatizadora do ministro e do governo, na qual se envolveram destacados membros do PS. Texto de João Semedo

A convergência das esquerdas

1. O contexto

2008, do Teatro da Trindade à Aula Magna tiveram aí lugar assembleias de proximidade entre socialistas descontentes, o campo do Bloco, outros grupos políticos e personalidades. Dessas assembleias tudo se disse, sobejou a especulação jornalística. Importa talvez perceber as razões por que foram possíveis. Dizer que se trataram de espaços de crítica, muito contundente, ao governo do Partido Socialista, é dizer pouco. E, no entanto, esse era o ponto de partida: a condenação das políticas liberais que têm dominado. Nesse aspecto teve o eco previsto. Texto de Luís Fazenda

Balanço do Ensino Superior 2008

O ano de 2008 foi um ano de grandes mudanças e de redefinição do ensino superior em Portugal. Ficou marcado pela consagração de um novo regime jurídico para as instituições que institui novas regras de funcionamento e uma lógica associada ao gerencialismo e ao paradigma liberal da "nova gestão pública"; pela implementação em força do processo de Bolonha com todas as suas contradições e consequências; pelo decréscimo do investimento público (com o correlativo agravamento das despesas dos estudantes e das suas famílias) e pela asfixia financeira das escolas, sob os protestos de reitores e estudantes e a agressividade arrogante do Ministério; pela descoordenação e fraqueza relativa de resposta dos estudantes mediante todo este processo. Texto de José Soeiro

O precariado está a passar por aqui

Há apenas dois anos, quem recorresse a um motor de busca para obter informação sobre recibos verdes, aperceber-se-ia que quase não havia o que pesquisar, apesar de mais de um milhão de pessoas trabalharem nesta condição.
Dois anos depois, a Wikipédia tem uma entrada sobre recibos verdes e o endereço ‘recibos verdes' está registado.
Dois anos depois, muitos milhares de pessoas já ouviram falar de ‘falsos' recibos verdes.
Dois anos depois, os recibos verdes começam a ter algum peso político e mediático. Texto de Cristina Andrade

2008, o ano em que o planeta se revelou finito

2008 será recordado como o ano em que o planeta se revelou finito, em que a actividade humana numa parte do mundo teve consequências reais e palpáveis noutra parte do planeta. Tal como a parábola da manta, que tapa de um lado destapando do outro, a crise dos cereais e do petróleo veio evidenciar da pior maneira os reais limites de alguns dos nossos principais recursos naturais. Texto de Rui Curado Silva

A grande recessão e o risco da deflação

O recentemente galardoado com o Prémio Nobel da Economia, Paul Krugman, tem uma carreira curiosa. Tendo escrito os seus principais contributos para a teoria económica há cerca de vinte anos, Krugman dedicou-se desde então à divulgação e ao debate das teorias económicas e, sobretudo, das opções dos governos do seu país, os Estados Unidos. Feroz crítico da economia especulativa de George Bush (e que tinha sido iniciada por Bill Clinton), já em 2005 Krugman tinha deixado o alerta: "A economia americana depende das pessoas venderem casas umas às outras, sendo as dívidas pagas com dinheiro emprestado pelos chineses". Texto de Francisco Louçã

Estados Unidos: um capítulo novo?

O neo-conservadorismo épico tinha morrido nas areias do Iraque e o neo-liberalismo do trickle-down tinha ruído nas lamas de New Orleans. O que aconteceu económica e politicamente nos Estados Unidos em 2008 foi apenas o início da escrita do capítulo seguinte de uma narrativa anunciada desde então. Texto de José Manuel Pureza

Professores: Projectar em 2009 o enorme capital de luta acumulado

No passado dia 1 de Março, quando várias centenas de professores se juntavam na Praça do Bocage, em Setúbal, para contestar o inacreditável e maquiavélico modelo de avaliação de desempenho docente, os jornalistas procuravam afanosamente colher declarações junto dos promotores da concentração. Mas quem eram esses promotores? Onde estavam? Texto de João Madeira

Crise alimentar

O ano de 2008 foi marcado pela emergência de uma crise alimentar mundial profunda devido ao grande aumento do preço dos alimentos básicos. Texto de Rita Calvário

A tríade dos “B”s: Os três bancos que marcaram 2008

Do ponto de vista das instituições financeiras, este será, com certeza, um ano para recordar. A crise financeira poderá ser a causa (e consequência) de alguns dos episódios passados, mas não será com certeza réu único. Texto de Mariana Mortágua