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1968: Praga, uma "Primavera" esmagada

A "Primavera de Praga" foi sufocada. As possibilidades de democratizar as "democracias populares" a partir do seu seio reduziram-se drasticamente; mas permanecerá o seu exemplo, como gesto colectivo de audácia e de combatividade, de entrega generosa, que encheu as ruas de Praga e de outras cidades e que levou muito mais longe a vontade de combater o estalinismo como forma pervertida e enquistada de um poder autoritário e burocrático.

Por João Madeira 

A partir de 1948, a Checoslováquia adoptou plenamente o modelo das "democracias populares" tal como haviam sido afeiçoadas e satelizadas pela União Soviética de Estaline após a segunda guerra mundial. Foi um processo de homogeneização económica e social, assente num regime de partido único exercendo um controlo absoluto sobre a sociedade, na submissão incondicional ao PC da União Soviética, na estatização total da economia com mecanização da agricultura e industrialização forçada, segundo um sistema de planificação económica decalcado do soviético, baseado em planos quinquenais.

O processo de desestalinização mitigada ocorrido apóso XX Congresso do PCUS não se reflectiu significativamente no país e, de forma tardia, é apenas nos anos Sessenta que esse processo de desanuviamento se vai verificar, em cujo contexto Alexander Dubcek ascende a 1º Secretário do PC Eslovaco.

Não há, todavia, uma acção determinada nesse sentidoe é pela emergência de velhos problemas calcados pelo autoritarismo estalinista que vão germinando, de modo disperso, núcleos que se rebelam contra o dogmatismo dominante, reclamando novas políticas. São intelectuais pertencentes à União dos Escritores, à Academia das Ciências ou ao Instituto de Ciências Económicas,que integram diversas comissões e grupos de trabalho junto da Direcção do PC Checoslovaco e que se aliam a sectores não comunistas.

Dubcek, que como secretário do PC Eslovaco integrava a Comissão Política do PC Checoslovaco, constrói uma rede de afinidades e solidariedades políticas dentro do partido, articulando-se com os sectores de maior pulsão reformista. É de uma fracção que se trata, que lhe permitirá acelerar, a partir de 1967-68 um conjunto de medidas de carácter  reformista, no que ficou conhecido como a "Primavera de Praga", acreditando poder mudar o partido e o regime por dentro

Trava-se uma luta forte e aberta dentro do PC Checoslovaco que conduz à demissão de Antonín Novotny, o principal dirigente que representava o poder estalinista enquistado, sendo substituído por Dubcek, já em 1968.

Emmatéria política, o ímpeto reformista manifesta-se contra as restrições às liberdades individuais, expressas através da Censura ou da acção da polícia política, a que se acrescentavam reivindicações de carácter nacional, insurgindo-se contra a concentração do poder nas mãos de uma minoria checa e em defesa dos direitos dos eslovacos. Era contra o que designavam de "centralismo burocrático" dePraga que se levantavam.

Em matéria económica criticavam a rigidez do regime, reclamando a reforma dos preços, o fim do congelamento salarial e uma maior abertura económica.

Em Abril de 1968 é publicado um Programa de Acção que tem em vista a separação do partido e do estado, a eleição dos dirigentes por voto secreto, o fim da autoridade imposta do partido, a criação de um sistema federal com o reconhecimento das nações checa eeslovaca em igualdade de direitos, uma reforma eleitoral com a possibilidade de escolher entre várias listas e vários candidatos, mais autonomia às empresas, a supressão da censura nos meios de comunicação, a liberdade de reunião.

O Programa de Acção é entusiasticamente recebido pela população num movimento em que convergem correntes  muito diversas, desde nacionalistas a social-democratas e a comunistas em rotura com a herança estalinista.

Criam-se novas organizações, clubes, jornais e nas fábricas constituem-se conselhos operários. O Programa de Acção começa a tornar-se insuficiente, exige-se mais. Cruzam-se várias dinâmicas no sentido de quebrar o monolitismo do Partido Comunista.

O 1º de Maio de 1968 rompeu com o carácter teatralizado das comemorações oficiais e constituiu uma enorme e calorosa manifestação de espontânea alegria e de disposição na construção de uma democracia socialista.

Várias sondagens em Maio e Junho desse ano apontavam para o fim do monopólio político por parte do Partido Comunista. 68% dos membros do partido e 86% da população consideravam desejável a instauração de um regime de pluralismo político.

Osdirigentes soviéticos inquietavam-se, receavam o contágio dessas ideias a outros países de democracia popular, temiam o desmantelamento do Pacto de Varsóvia e acenavam com os perigos da restauração do capitalismo.

No entanto, o grupo de Dubcek não questionava nem a matriz marxista nem o papel do partido, rejeitando unicamente o seu carácter autoritário e concebendo-o como dinamizador das transformações económicas e sociais.

Mas para o PCUS era o modelo com que haviam satelizado as democracias populares que era posto em causa. É por isso exercida uma pressão fortíssima sobre os dirigentes checoslovacos. Sem resultados, restam as medidas de força, com o plano de invasão a ser decidido pela Comissão Política do PC da União Soviética em 20-21 deJulho e posto em movimento a 16 de Agosto.

Na noite de 20 para 21 de Agosto de 1968, um poderoso exército de 250 mil homens do Pacto de Varsóvia - a maioria da União Soviética, mas também da Bulgária, República Democrática Alemã, Hungria e Polónia invadia a Checoslováquia.

Os invasores julgaram resolver a situação em escassas horas, porém encontraram resistência passiva no partido e no Governo e uma população que passaria rapidamente da perplexidade à resistência activa. Em Praga, a partir do meio da tarde de 21 de Agosto, as ruas encheram-se de gente e cercavam-se as instalações da rádio nacional para garantir informação livre sobre o desenrolar dos acontecimentos. Nas paredes surgiam pinturas "Lenine, levanta-te,Brejnev está louco!" ou "O ‘Circo' soviético está de novo em Praga". As placas com os nomes das localidades e das ruas eram destruídas, os seus nomes substituídos ou tornados ilegíveis para desorientar as forças ocupantes.

Engrossavam enormes manifestações que entoavam canções patrióticas. Os tanques soviéticos eram cercados pela população que tentava convencer os soldados de que haviam sido enganados e que apenas pretendiam tomar em mãos livremente o seu destino.

Na Praça junto ao Museu Nacional havia um grande pano onde se lia "Viva Dubcek! URSS para casa!" e é aí que se registam nos confrontos com o exército os primeiros feridos e mortos. A propósito das paredes do museu cravejadas de balas, inscrevia-se "A arte popular soviética surgiu nas paredes do Museu Nacional"

Aparecem os primeiros tanques pintados com a cruz suástica e são lançados coktails Molotov contra os blindados, incendiando alguns.

O exército invasor havia ocupado a sede do PC Checoslovaco e colocado os principais dirigentes sob prisão, para os levar depois para a União Soviética. Contudo, várias estruturas do partido realizam o XIV Congresso do partido. São 1100 delegados que se reúnem clandestinamente numa grande fábrica nos arredores de Praga, com os operários e milícias populares a assegurarem a defesa da reunião.

No Politika, jornal que o partido passa a editar, sublinha-se como a revolução checoslovaca, que vinha na esteira da revolução bolchevique de 1917, fora brutalmente interrompida pela invasão da União Soviética e dos restantes países do Pacto de Varsóvia.

Em Moscovo os dirigentes checoslovacos, sujeitos a fortíssimas pressões subscrevem um protocolo, redigido pelos soviéticos, segundo o qual é justificada a intervenção armada. Era a consumação da doutrina da "soberania limitada" de Brejnev, segundo a qual os soviéticos se arrogavam a intervir em qualquer país aliado.

A "Primavera de Praga" foi sufocada. As possibilidades de democratizar as "democracias populares" a partir do seu seio reduzem-se drasticamente; mas permanecerá o seu exemplo, como gesto colectivo de audácia e de combatividade, de entrega generosa, que encheu as ruas de Pragae de outras cidades e que levou muito mais longe a vontade de combater o estalinismo como forma pervertida e enquistada de um poder autoritário e burocrático. Sobre a falência desse modelo inscreveu-se e reforçou-se, todavia, no património da esquerda, a ideia da democracia socialista como alicerce do Socialismo.

Leia também:

Dossier Maio de 68  

(...)

Neste dossier:

Maio de 68

Quarenta anos depois, o Esquerda.net preparou um dossier sobre os acontecimentos do Maio de 68 francês e também sobre a onda revolucionária que abalou o mundo naquele ano. A cronologia dos acontecimentos, os protagonistas, os sons e as músicas, os vídeos, os balanços do Maio fazem parte deste dossier, que continuará a ser actualizado durante o mês.

1968: Praga, uma "Primavera" esmagada

A "Primavera de Praga" foi sufocada. As possibilidades de democratizar as "democracias populares" a partir do seu seio reduziram-se drasticamente; mas permanecerá o seu exemplo, como gesto colectivo de audácia e de combatividade, de entrega generosa, que encheu as ruas de Praga e de outras cidades e que levou muito mais longe a vontade de combater o estalinismo como forma pervertida e enquistada de um poder autoritário e burocrático.

Por João Madeira 

Brasil 1968: "Mataram um estudante. Podia ser seu filho"

A onda de mobilizações estudantis que atravessou o mundo no ano de 1968 também passou pelo Brasil. Apesar da ditadura militar que fora implantada quatro anos antes, o movimento estudantil vivia em 1968 uma enorme ebulição. A União Nacional de Estudantes (UNE), apesar de ter visto a sua sede incendiada pelos próprios militares golpistas de 1964, não fora desarticulada, funcionando em clandestinidade. O que detonou as grandes mobilizações de Março e Junho de 1968 foi a morte do estudante Edson Luis, em 28 de Março, no Rio de Janeiro.

As heranças de Maio

Maio de 68 foi há quarenta anos. E a evidência da efeméride, como não podia deixar de ser, tem trazido a sua habitual profusão de eventos: emissões televisivas, debates, livros, colóquios, álbuns, DVDs. E ainda imagens inéditas, o «onde estava em Maio de 68?», as sondagens de opinião, «o que sempre quis saber»... Mas a previsível e cíclica proliferação de discursos e objectos ganhou, neste aniversário, uma importância particular. Como pano de fundo de todos os debates têm estado quase sempre as acusações anti-68 lançadas pelo actual presidente francês no ano passado, em plena da campanha eleitoral.

Por Manuel Deniz Silva, publicado originalmente na revista Vírus

Protagonistas

Pequenas biografias dos que dirigiram o movimento de Maio de 68 francês, e também dos que participaram, dos que influenciaram e dos que se opuseram. Textos baseados num dossier preparado pelo Nouvel Observateur.

O Maio francês no YouTube (2)

Veja um vídeo sobre os acontecimentos de Maio-Junho de 1968, em França.

O Maio francês no YouTube (1)

Veja uma selecção de vídeos sobre os acontecimentos de Maio-Junho de 1968 em França.

O romantismo revolucionário

O espírito de 68 é uma bebida potente, uma mistura apimentada e desejável, um coquetel explosivo composto por diversos ingredientes. Um dos seus componentes - e não o menor - é o romantismo revolucionário, ou seja, um protesto cultural contra os fundamentos da civilização industrial/capitalista moderna, o seu produtivismo e o seu consumismo, e uma associação singular única e sem género, entre subjectividade, desejo e utopia - o "triângulo conceitual" que o define, segundo Luisa Passerine, 1968[1]. Texto de Michael Löwy[2], publicado pela revista Espaço Académico. [3]

Dia-a-dia, o ano de 1968 em França

No ponto mais alto do mês de Maio de 1968 em França, dez milhões de trabalhadores estavam em greve, os transportes e os serviços públicos estavam paralisados, centenas de fábricas e de universidades ocupadas, os confrontos nas barricadas em Paris sucediam-se até a madrugada. Leia em seguida uma cronologia detalhada dos acontecimentos.

Sons: "É só um começo, continuemos o combate"

1968 foi um ano marcado por várias revoltas praticamente em todos os continentes. A juventude esteve na primeira linha na rejeição da ordem estabelecida e da sociedade de consumo. A denúncia da guerra americana no Vietname era um ponto de convergência nos Estados Unidos, nas universidades europeias, como Paris, Roma, Berlin, Londres e também no Japão.

"A Batalha de Praga", de Flausino Torres

A Primavera de Praga de 1968 foi testemunhada pelo historiador e militante comunista português Flausino Torres, pai do arqueólogo Cláudio Torres, que dava aulas na Universidade Karlova. Horrorizado, Flausino Torres assistiu aos tanques soviéticos esmagando a experiência de um "socialismo sem ditadura; socialismo com democracia, com minorias; socialismo sem censura à imprensa". É um extracto do relato que escreveu na altura, "A Batalha de Praga", que nunca chegou a ser publicado, que pode ser lido abaixo.

Heréticos e rebeldes

Uns dirão que a revolução desertou. E que tomar o poder é mais fácil do que se pensava. Outros dirão que não: tudo é possível. Mas difícil: é preciso um terramoto na história, nas fibras mais profundas da sociedade, para que se abra uma escolha.
Por Francisco Louçã
Artigo publicado originalmente na revista Vida Mundial de Maio de 1998

A arte nas ruas

Os mais criativos e eficazes cartazes de rua de toda a história foram criados em assembleias gerais, produzidos artesanalmente, discutidos abertamente nas semanas do Maio francês de 1968. Foram criações colectivas que envolveram mais de 300 artistas. A sua eficácia é ainda hoje um exemplo para todos os que se preocupam com a arte de passar uma mensagem. É um pouco da sua história, que é também a história do Atelier Popular, que se conta aqui.