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Europa: A refundação ou o caos

A crise grega é terrivelmente reveladora das contradições da construção europeiaAs reacções à crise grega demonstram a incapacidade dos governos burgueses para definirem políticas cooperativas e esta cegueira conduz directamente ao caos.
Artigo de Michel Husson.

A crise grega é terrivelmente reveladora das contradições da construção europeia. Uma moeda comum pressupunha um elevado grau de homogeneidade entre os respectivos países, ou políticas e instituições capazes de realizar essa homogeneidade. Ora, nenhuma destas duas possibilidades foi cumprida. No momento da criação do euro, os países tinham modelos de crescimento diferentes: nuns, o motor de crescimento era o mercado interno; enquanto que noutros o crescimento era impulsionado pelas exportações. Alguns países estavam numa lógica de recuperação tendo como efeito uma taxa de inflação a priori mais elevada.

O resultado desta configuração apareceu mesmo antes da crise, sob a forma de uma divergência acrescida das taxas de crescimento, ao contrário da crença segundo a qual o facto de se pertencer a um mercado único - dotado de uma moeda única - seria por si só um factor de convergência. Entre 1992 e 2006, o crescimento foi em média de 3,1% por ano nos países "ganhadores" (Espanha, Finlândia, Grécia, Irlanda, Luxemburgo, Reino Unido, Suécia); tanto como nos Estados Unidos (3,1%). Ao contrário, foi apenas de 1,6% nos países "perdedores" (Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Itália e Portugal).

Um processo de convergência teria podido ser sustentado por uma política de harmonização das condições fiscais e sociais da actividade económica e pela aplicação de ferramentas adequadas, por exemplo um orçamento europeu que financiasse as transferências necessárias a essa harmonização. Mas a escolha de um modo de construção liberal privilegiando a concorrência "livre e não falseada" excluía à partida essa orientação.

A escolha da moeda única não foi motivada pelas suas supostas vantagens. A estabilização das taxas de câmbio teria podido ser obtida por dispositivos menos rígidos que permitissem reajustamentos periódicos. O euro serviu sobretudo para impor a disciplina salarial: como daí em diante era impossível jogar com a taxa de câmbio, o salário tornou-se a única variável de ajustamento.

Mas isso não trouxe solução à divergência das trajectórias económicas nacionais. Dois procedimentos permitiram gerir estas tensões até à crise. O primeiro consistiu para certos países em proceder a uma desvalorização antecipada, permitindo-lhes entrar no euro com uma taxa de câmbio que assegurasse uma espécie de reserva de competitividade. Foi a via escolhida em particular pela Espanha e pela Itália na primeira metade dos anos 90. Em sentido inverso, outros países, como a França (e mesmo até um certo ponto a Alemanha) entraram no euro com uma taxa de câmbio mais desfavorável em termos de competitividade.

O segundo factor de flexibilidade corresponde à única vantagem do euro: o défice externo de um país não pesa sobre a sua própria moeda, pois ele já não a tem. Globalmente, as trocas externas da zona euro estão quase equilibradas e o problema do euro era, no período mais recente, ser muito forte em relação ao dólar. Esta protecção conferida pelo euro permitiu a um certo número de países obter um crescimento elevado, na base de um défice externo crescente. A moeda única garantia além disso uma relativa homogeneidade das taxas de juro, em particular no que respeita ao financiamento da dívida pública.

Esta configuração não era sustentável. A crise acelerou brutalmente os processos e a especulação financeira fez aparecer à luz do dia as tensões inerentes à Europa neoliberal. Mas a polarização da zona euro em dois grupos de países existia antes da crise: de um lado, a Alemanha, a Holanda e a Áustria que beneficiavam de importantes excedentes comerciais e os seus défices públicos eram moderados. Do outro, encontravam-se os já famosos "PIGS" (Portugal, Itália, Grécia, Espanha) numa situação inversa: fortes défices comerciais e défices públicos já acima da média. A Bélgica, a França, a Irlanda e a Finlândia ocupavam uma posição intermédia.

Com a crise, esta polarização acentua-se: os défices públicos aumentaram em todo o lado mas muito menos no primeiro grupo de países (Alemanha, Holanda, Áustria) que conservam excedentes comerciais. Em todos os outros países a situação degrada-se com a explosão dos défices públicos e um desequilíbrio crescente da balança comercial.

Agora, a Alemanha quer impor a lógica crua do euro, porque estão hoje esgotados todos os meios que permitiam escapar dela. Os países mais atingidos pela crise devem aplicar planos de ajustamento. A submissão das autoridades europeias aos mercados financeiros é total e a Grécia é um laboratório das políticas de austeridade que os governos querem aplicar em toda a Europa.

Esta política é suicidária e só pode conduzir a uma nova recessão. Os planos de ajustamento vão evidentemente travar a procura interna e a Alemanha não poderá compensar os mercados que perde na Europa com um acréscimo de exportações para o resto do mundo. A situação poderá levar certos países a saírem do euro para poderem encontrar margem de manobra jogando com a taxa de câmbio. Mas é uma solução desesperada que poderia levar a uma espiral recessiva e desencadearia a especulação que ninguém tenta enquadrar.

Existem contudo alternativas que tomam em conta as assimetrias estruturais entre economias nacionais e implicam uma refundação dos próprios princípios da construção europeia.

● A especulação financeira deve (e pode) ser desencorajada de imediato, através da instauração de uma taxa sobre as transacções financeiras. Mas é preciso ir para a sua colocação fora de lei, por exemplo interditando o mercado dos CDS /Credit Default Swaps), onde se desenvolve a especulação sobre os títulos de dívida pública, e qualquer forma de "vendas a descoberto".

● Os Estados não devem financiar mais o seu endividamento junto dos mercados financeiros, mas junto do Banco Central Europeu, com a obrigação para os bancos de deterem um montante mínimo de títulos da dívida pública, à mesma taxa de refinanciamento de que eles beneficiam.

● O princípio de harmonização deve substituir o da concorrência, com a criação de um fundo europeu de harmonização financiado por uma taxação unificada do capital. Teria como objectivo realizar a convergência, por cima, dos direitos sociais na Europa.

● Uma verdadeira saída da crise implica o retorno ao pleno emprego e passa pela criação directa de empregos social e ecologicamente úteis e pela redução da duração do trabalho. Sobre estes dois pontos, a Europa pode ser um motor de lançamento de programas de investimento coordenados e de estabelecimento de normas sociais comuns.

Tudo isto é possível e racional mas está em total oposição ao Tratado de Lisboa e à lógica capitalista, ainda para mais endurecida pela crise. As reacções à crise grega demonstram a incapacidade dos governos burgueses para definirem políticas cooperativas e esta cegueira conduz directamente ao caos. Nestas condições, a única hipótese estratégica plausível é a de explosões populares de resistência aos planos de austeridade, que façam emergir a exigência de uma Europa solidária.

Artigo disponível em hussonet.free.fr

Tradução de Carlos Santos

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