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O SEF tem de cumprir a lei
A Leonarda tinha 15 anos. Estava com os colegas no autocarro para iniciar uma visita de estudo. Há cinco anos que frequentava o Instituto André Malraux, em Levier, França, e era reconhecida por ter boas notas.
O ar indignado da professora quando atendeu o telefonema era um mau prenúncio. O próprio presidente da Câmara de Levier servia de intermediário para a mensagem da polícia: o autocarro tinha de parar, Leonarda deveria ser presa por estar em situação irregular no país. Tinha sido negado o visto à família de Leonarda, seriam deportados. Minutos depois, Leonarda foi presa à frente dos colegas de escola.
Leonarda estava bem integrada, falava bem a língua francesa, era boa aluna. Nada disso lhe valeu. Como disse o presidente da câmara à professora: "Ia haver eleições." Foi em 2013. Hoje, a Europa está ainda mais desumana.
O crescimento da extrema-direita à escala europeia foi um dos principais motivos para que as leis de imigração tivessem um claro recuo. Os partidos do establishment foram cedendo à agenda política da extrema-direita com medo de erosão da sua base de apoio, incorporando partes do discurso xenófobo contra os imigrantes. O eleitoralismo do centrão tornou-se o reforço dos preconceitos contra imigrantes a cada eleição nacional. Desde o brexit às eleições francesas, a realidade demonstra esse percurso.
A política de imigração europeia está em claro recuo civilizacional, fruto desse processo político. Não preciso sequer de referir os muros da vergonha na Bulgária ou Hungria, ou o miserável acordo em que a União Europeia (UE) paga à Turquia para deter refugiados em condições sub-humanas, com o propósito de barrar a passagem para as fronteiras europeias. Basta salientar que a UE enviou no início deste ano uma diretiva a todos os países para que fosse acelerada a política de expulsão de imigrantes, com o objetivo de alcançar mais de um milhão de pessoas.
Assim, quando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) emite um parecer onde afirma que as alterações que o Bloco de Esquerda propôs à Lei de Estrangeiros estão "em contraciclo e contra a posição que vem sendo assumida pela União Europeia", só pode ser visto como um elogio. Perante a desumanidade reinante, ter a humanidade de considerar os imigrantes como pessoas é a garantia de que não perdemos o fio do progresso.
Contudo, o que já se viu lá fora está agora a acontecer cá dentro. Face à perda de apoio popular de PSD e CDS e ao seu rotundo falhanço no discurso económico, o desespero é copiar a restante direita europeia. Não foram sempre assim.
Nos últimos anos, perante a mesma lei, foram aplicados critérios muito diferentes a imigrantes que, tendo entrado em Portugal com visto de turista, pretendiam ter autorização de residência permanente. Há um antes e um depois de 2016. Depois de 2016 existiu uma mudança nos procedimentos do SEF que passou a rejeitar o que anteriormente aceitava. A lei não tinha mudado nessa altura, o que mudou foi quem dirigia o SEF.
Como é possível que a mudança na direção do SEF tivesse resultados tão diferentes na aprovação de processos de autorização de residência? A resposta é simples: é que a lei era baseada na discricionariedade do diretor do SEF, ainda por cima delegada em centenas de inspetores com critérios diferentes. Assim, se explica como tantos processos foram rejeitados e como era necessário mudar a lei para acabar com esta discricionariedade.
O segundo propósito da lei foi acabar com a ilegalidade para onde eram atirados milhares de imigrantes. É que o SEF obrigava - sem estar escrito em nenhuma lei - que os imigrantes tivessem seis meses de inscrição na Segurança Social antes de poder ser admitido o seu pedido de residência para avaliação. Como era possível trabalhar sem visto de trabalho? Apenas de forma ilegal. Por isso mesmo, a nova lei será um instrumento importante para combater as redes de trabalho ilegal que exploram imigrantes. Será disso que PSD e CDS estão saudosistas?
Na verdade, PSD e CDS não têm problemas com imigrantes, apenas com imigrantes pobres, que venham trabalhar. Os imigrantes gold têm um mar de facilidades. Por sua vez, o SEF parece estar claramente a atrasar a aplicação da nova lei: o serviço online onde os imigrantes podem pedir a sua autorização de residência está suspenso há semanas. Enquanto isso, o dos vistos gold nunca falhou.
Ainda se lembra da Leonarda, que referi no início do texto? Depois da pressão mediática do caso, François Hollande ofereceu-lhe a possibilidade de regressar, mas só a ela, não à sua família. Depois do preconceito, o desrespeito por uma família que teve o pecado de nascer pobre.
Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 7 de setembro de 2017
Comentários
Exmo. Sr. Deputado Pedro
Exmo. Sr. Deputado Pedro Filipe Soares
Embora sejam aceitáveis alguns dos argumentos apresentados por V. Exa., o texto apresenta algumas incorrecções.
Desde logo, a polícia não prende, apenas realiza detenções. Somente os juízes podem decretar a prisão de alguém. Acresce o facto de os menores não poderem ser detidos e muito menos presos. Logo a Leonarda não foi "presa à frente dos colegas de escola".
Os artigos 88º e 89º nº 2 da Lei 23/07, de 04/07 sempre foram bastante claros no que se refere aos requisitos necessários para a concessão de uma autorização de residência, nomeadamente a entrada legal em TN e a situação regularizada perante a Segurança Social. Logo o SEF, um serviço de segurança do Estado Português, não cumpria a Lei quando durante vários anos concedeu as autorizações de residência temporárias (e não permanentes como V. Exa. erradamente menciona - a autorização de residência permanente é concedida ao cidadão nacional de país terceiro detentor de autorização de residência durante 5 anos!) a cidadãos que não tinham entrada legal em Portugal.
No entanto, considero que cada caso deve ser sempre analisado individualmente e se fosse considerado que o nacional de país terceiro em questão reunia as condições para ficar a residir legalmente em Portugal, mesmo que não tivesse a entrada legal, a excepção da Lei poderia ser activada e a AR concedida. Foi o que aconteceu a milhares de cidadãos nessas condições.
Ora em 2016, o SEF passou a cumprir a Lei, não deixando, contudo, de conceder aos imigrantes a hipótese de reunir um conjunto de documentação que permitisse confirmar essa entrada legal em Portugal. Não se pode é aceitar toda a documentação apresentada, pois um serviço policial não pode deixar de cumprir a Lei Penal e descartar documentação falsa ou fraudulenta (nem todos os emigrantes são cidadãos cumpridores da Lei!)
Relativamente ao argumento de poder discricionário que V. Exa. refere, o mesmo não existe. Mas mesmo que se aceitasse a sua existência, tal poder nunca era do "inspector", mas sim do membro de Governo ou do Director do SEF, que revogaram muitos dos pareceres negativos que haviam sido concedidos.
Quanto à obrigação dos descontos para Segurança Social durante seis meses, confirma-se que tal requisito não consta da legislação, mas decerto V. Exa. compreenderá que se deva proceder à fiscalização de todos os requisitos legais, para que situações fraudulentas sejam detectadas e os imigrantes que cumprem as regras possam ser beneficiados.
A actual redacção não eliminou o princípio da manifestação de interesse, pelo que o argumento utilizado por V. Exa no que se refere à necessidade de trabalhar de forma ilegal durante vários meses se mantém, pois o imigrante continua a ter de celebrar a promessa de contrato ou contrato de trabalho, a trabalhar e a efectuar os seus descontos antes de obter a autorização de residência. Mesmo que esteja durante o período de vigência do visto de curta duração (ou isenção do mesmo), mantém-se a irregularidade, pois tal visto é apenas e só para actividades de turismo ou culturais (tal como definido pela legislação comunitária).
O sistema informático a que V. Exa. se refere esteve efectivamente inactivo até 11/09/2017, mas os imigrantes podiam (e várias centenas fizeram-no) preencher o formulário e remete-lo para o SEF para a primeira análise.
Embora sabendo que estes esclarecimentos possam ser considerados como sendo provenientes daquele que não quer os imigrantes em Portugal, tal não corresponde à verdade. Considero o trabalho que os imigrantes realizam essencial para o desenvolvimento do país. Não acho é que todas as situações tenham direito a obter uma autorização de residência, sejam os nacionais de países terceiros requerentes de AR por artigo 88º ou ARI ( pedidos que ao contrário do afirmado por V. Exa. são igualmente alvo de indeferimento).
Com os melhores cumprimentos
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