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Independentes de modo vário

A linha de diferenciação na democracia local não é entre partidos e independentes, é entre quem alarga a democracia e quem perpetua a deformação da prática da democracia tomando-a como jogo de elites e de iluminados.

É falso que as eleições autárquicas sejam “as menos políticas” das eleições. A afetação do espaço público para construção privada ou para lazer de todos não é uma questão puramente técnica como a escolha entre o reforço do transporte público ou a aceitação do império do automóvel privado é evidentemente política. Por isso, é falso também que o que importa nas eleições autárquicas é a competência pessoal de quem se candidata. Claro que quem se candidata tem que ser competente. Mas a pergunta é: competência para pôr em prática o quê? Este ‘quê’ é o que realmente tem que ir a votos.

Sendo as eleições locais políticas, são políticas as candidaturas que a elas se apresentam. As candidaturas independentes são, pois, tão políticas como as candidaturas partidárias. Ambas apresentam umas propostas e não outras, escolhem umas prioridades e não outras, farão alianças com umas forças e não com outras.

O que dá importância democrática a uma candidatura independente, o que a torna em elemento qualificador da democracia local não é, pois, a sua autoproclamada independência, é sim o modo como é independente em concreto. Há independentes de esquerda e independentes de direita, há independentes presidencialistas e independentes de base. O que não há é independentes disto tudo ao mesmo tempo. O arquétipo do tecnocrata equidistante de tudo e do seu contrário é um puro e perigoso mito político, tão falso como o slogan que o simboliza: “o meu partido é – e segue-se o nome do município”. Não, um independente não é por definição mais fiel à satisfação dos interesses da população do que um militante partidário. E não, uma candidatura independente não é por definição mais democraticamente pura do que uma lista partidária. Depende, repito, do modo concreto de ser independente na disputa eleitoral local. E, a este respeito, a experiência portuguesa tem seguido dois caminhos. O primeiro é o das candidaturas unipessoais, o segundo é o dos movimentos de cidadãos.

O primeiro modelo – que teve em Isaltino o seu pioneiro e tem hoje em Rui Moreira e em seus putativos imitadores os seus intérpretes mais conhecidos – tem como figurino a concentração absoluta da candidatura na figura do cabeça de lista. É uma fórmula que assenta numa compreensão presidencialista e top-down da política local. O cabeça de lista, venha do universo complexo das zangas intrapartidárias ou do universo evanescente das notoriedades, é tudo nestas candidaturas. A suposta alergia aos partidos é a sua marca (suposta porque, na prática, é de permanente jogo tático com eles que se trata). O que o eleitor destas candidaturas abraça com convicção é que o cabeça de lista porá a terra no mapa, a tirará do marasmo, etc. Como e com quem são aspetos de somenos. A força deste modelo é jogar o jogo da fulanização como modo de ser da democracia representativa. Mas a fulanização como trunfo é também o germe do seu próprio enfraquecimento: ela nunca resiste à prova do tempo.

O segundo modelo arranca justamente da vontade de juntar participação à representação. O seu entendimento da política local é bottom-up e materializa-se na articulação entre o ativismo de causas sectoriais e a disputa institucional das decisões. As redes de militância, a escala da vizinhança para as agendas de transformação, o chamamento continuado dos cidadãos ao debate e ao envolvimento nos processos deliberativos são a sua filosofia. A sua relação com os partidos tem o desafio – e não o conflito com eles – como marca. A força deste modelo é a sua visão mais aberta e exigente da democracia local. Uma cultura de absoluto primado do coletivo em detrimento do individual é a sua fragilidade em tempos de fulanização da política.

A linha de diferenciação na democracia local não é entre partidos e independentes, é entre quem alarga a democracia e quem perpetua a deformação da prática da democracia tomando-a como jogo de elites e de iluminados. Ora, tanto nos partidos como fora deles há gente que está de um lado e gente que está do outro desta diferenciação.

Artigo publicado na revista “Visão” a 10 de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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