Está aqui

Direita volver: a magia das primárias

As diretas não são só um fútil concurso de beleza ou a porta aberta a jogos financeiros clandestinos. São uma campanha para forçar a esquerda a virar ao centro e à direita.

Há poucos animais mais perigosos, num país desesperado, do que os populismos. No sono da razão, crescem as assombrações: os populismos prometem tudo a todos, como se não houvesse amanhã. Ora aqui está o seu último investimento: a crise é culpa dos partidos, é preciso mudar os partidos, devemos forçá-los a ter primárias para que sejam os eleitores, e não os partidos, a escolher os candidatos dos partidos. A salvação de Portugal são as primárias.

É indiscutível que há culpas dos partidos na crise. Os governos que aceitam e acarinham as medidas da troika são de partidos. Cada pensão que é roubada tem a assinatura de dois partidos. Cada privatização tem a chancela de três partidos. Outros partidos ainda não conseguiram a maioria que dispute as suas alternativas. Os partidos têm culpas. A pergunta legítima, então, é esta: as primárias vão forçar os partidos a lutar contra a austeridade e a defender Portugal, os trabalhadores e os pensionistas?

Começo pelo princípio: já há primárias. No PS, PSD e CDS. O resultado é evidente, essas primárias não impediram que esses partidos escolhessem os candidatos pró-troika. Não mudou nada. Mais ainda: aproveitando um vazio legal, as campanhas das primárias têm contas desconhecidas e ninguém sabe quem financiou viagens, jantares e comícios. Qualquer empresa o pode ter feito. Não sabemos. Pode até ter mudado para pior: não sabemos se os candidatos devem alguma coisa a alguém.

Mas o populismo agitar-se-á indignado: não é nada disso, são maus exemplos, queremos muito mais, o que é preciso é primárias para o voto de todos os eleitores. Tudo aberto, todos decidem tudo. Vejamos os méritos deste clamor.

O primeiro problema desse modelo é que ele viola um direito constitucional. A Constituição estabelece que os cidadãos que o entendam podem formar um partido para exprimir o seu ponto de vista. Portanto, têm o direito inalienável de escolher como funcionam, quem os dirige e quem os representa para se baterem pelo seu programa. Ninguém lhes pode retirar esse direito. Se os membros de um partido não podem escolher quem candidatam ao parlamento ou ao governo, então também perderam o direito de decidir que proposta apresentam à sociedade. O TC nunca aceitaria uma lei neste sentido.

O segundo problema é a consequência deste modelo: ele esvazia a responsabilidade. Os partidos deixam de ser espaços de decisão comum sobre o programa comum dos seus membros, passam a ser cascas de campanhas individuais. Quem tem fortuna, ou financiadores, pode disputar as primárias abrindo uma sede, colocando outdoors, contratando funcionários, pagando publicidade numa TV – tudo legal, é mesmo isso que quer dizer uma primária. Pior ainda, a partir de uma vitória na primária, o eleito não pode ser escrutinado: pode lembrar-se de propor a pena de morte, a expulsão dos ciganos, o fim do RSI ou um hipermercado dentro do Templo de Diana, porque a sua legitimidade é independente ao partido. Deixa de haver controlo democrático. O partido está lá, mas não conta, e os eleitores só voltam dentro de quatro anos. A democracia é substituída pelo individualismo populista.

O terceiro problema é que, no conjunto, os eleitores têm variadas inclinações, mas de dominância de direita e de centro. Por isso, se votarem em putativas diretas no CDS, os eleitores do PSD, matreiros, vão escolher um candidato que se submeta a Miguel Relvas. Se votarem em diretas no PCP ou no Bloco, os eleitores fiéis ao PS vão escolher quem se candidate para propor uma estátua ao PEC4 e a continuidade da austeridade inteligente. Ou seja, os eleitores votam de acordo com as suas convicções e lá estarão qualquer que seja o regulamento das primárias: ou são abertas a todos ou são uma farsa. E as convicções dos eleitores do PSD e PS, que são a grande maioria, não são as de outros partidos.

As diretas, assim, não são só um fútil concurso de beleza ou a porta aberta a jogos financeiros clandestinos. São uma campanha para forçar a esquerda a virar ao centro e à direita. O resultado será sempre um reforço do PS e do PSD, porque os seus eleitores anularão os que noutros partidos se lhes opõem. Assim, esta solução pretende um efeito: em vez de forçar os partidos a romper com a austeridade, quer consagrar o seu domínio e anular as contestações. Se a crise de Portugal é a política dos partidos da austeridade, então ela agravar-se-ia com o populismo.

Ao contrário do populismo, que descreve a sociedade como plana e dormente, à espera de despertar ao som melodioso de um Flautista de Hamelin, os democratas reconhecem uma democracia com contradições e com disputa. Os partidos são parte dessas disputa e têm o dever de confrontar

projetos, convergentes nuns casos, antagónicos noutros. Só os seus

membros podem decidir quem melhor que os representa. Nenhum

financiador, nenhuma agência publicitária, nenhuma empresa, nenhum outro partido tem o direito de intervir nessa escolha.

Artigo publicado no jornal “Público” de 13 de novembro de 2013

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
Comentários (13)