Está aqui

Uma homenagem a Stuart Hall

Lembro-me de comentar com um amigo do sexto ano que esse sujeito Hall parecia o que literalmente menos merdas dizia de todos com os que me deparei em qualquer meio de comunicação. Artigo de Jeremy Gilbert, publicado em Open Democracy.
Jeremy Gilbert reflete sobre a vida e obra de Stuart Hall que morreu na passada segunda-feira com 82 anos de idade.

Stuart Hall morreu. A enormidade desta perda é sem exagero. De pouco serve tentar medir a importância de Hall em relação a outras figuras significativas: ele próprio iria abominar o individualismo macho desse gesto. Mas desde há muito tempo que a esquerda intelectual no Reino Unido não sofria uma perda assim, ou de forma mais penetrante, uma perda temida por quem a possa ter previsto. Não vou repetir aqui grande parte das informações contidas no obituário soberbo escrito pelos meus colegas, Bill Schwarz e David Morley, e convido os leitores a consultá-lo primeiro se não estiverem familiarizados com a narrativa básica da vida e carreira de Hall.

Não quero esta peça seja sobre mim. Mas é-me difícil explicar a importância de Hall e o âmbito e alcance do seu significado, sem explicar o processo em que o aprendi. É também, talvez, pedir demais a alguém que pessoalmente deve tanto a Hall que fale sem se referir à sua própria experiência um pouco. Portanto desculpem. Algo disto vai ser sobre mim.

Confrontei-me pela primeira vez com o trabalho de Stuart Hall enquanto adolescente nas páginas da revista Marxism Today [Marxismo Hoje]. É difícil imaginar hoje que existiu um tempo antes do Google; mas houve, e naquele tempo não era assim fácil aprender tudo sobre um escritor que só conhecíamos como um nome que assinava uma publicação. Eu não sabia muito sobre os Estudos Culturais - embora a faixa de homenagens após a morte de Raymond Williams e as referências ocasionais no MT e no New Statesman (sim, acreditem ou não, houve um tempo em que o New Statesman não era uma revista de esquerda totalmente hostil a envolver-se com ideias difíceis) - já me tinham dado uma ideia que poderia ser interessante. E não sabia que Hall tinha alguma coisa a ver com isso: no começo achei que era um colunista político profissional. Aos poucos, lendo a revista mensal, percebi que na verdade era algum tipo de académico. Fiquei impressionado. Lembro-me de comentar com um amigo do sexto ano que esse sujeito Hall parecia o que literalmente menos merdas dizia de todos com os que me deparei em qualquer meio de comunicação.

Isso era muito importante para um adolescente 'irreconstruído pós-punk' (como eu poria a coisa) nos últimos dias de primeira-ministro de Thatcher: 'não dizer merdas' era basicamente o meu critério para o que significava ser um ser humano bem sucedido. As análises incisivas de Hall sobre a relação entre cultura, poder, mudança tecnológica e social fazia mais sentido para mim do que qualquer outra coisa que tivesse lido, ou ouvido falar ou pensado. A sua compreensão gramsciana do thatcherismo ajudou-me por fim a entender as contradições aparentemente evidentes inerentes ao empenhamento dos Tories com o individualismo radical e conservadorismo social. As suas contribuições para o projeto 'New Times' [Novos tempos] do Marxism Today pareciam-me definir o que deve parecer uma política progressista na era (pós)moderna: trabalhar no sentido da mudança cultural e tecnológica, para fins democráticos e igualitários. E ainda parecem.

E assim foi, inspirado pelo exemplo de Hall muito mais que outra coisa, que acabei num curso  superior de Estudos Culturais, no então Instituto Politécnico de East London, apesar das ofertas de instituições bem mais 'prestigiadas' em que eu não confiava tanto não ser necessário, em boa medida, 'dizer merdas'. Mesmo aí não tinha ideia de que Hall tinha sido decisivo para a criação e validação do programa pioneiro de licenciatura, juntamente com o seu amigo e colaborador Michael Rustin, um membro sénior do quadro da instituição, e que tinha ensinado muitas pessoas maravilhosas e inspiradoras que me ensinariam durante esses três anos marcantes para a vida (Alan O'Shea, que haveria de ser o último parceiro de escrita de Hall; Mica Nava; Bill Schwarz; a esposa  de Hall, Catherine, etc.). Só vim a perceber uns anos mais tarde, quando tinha voltado para o que viria ser a Universidade de East London para tentar continuar o legado como professor, enquanto seguia com o meu doutoramento em Sussex com outro antigo aluno e colega de Stuart, James Donald.

Mas só comecei a apreciar totalmente a pura enormidade da contribuição de Stuart, quando comecei perceber por mim o que poderia significar ser um professor politicamente engajado de 'Estudos Culturais'. Porque enquanto a teoria exótica em que eu era tão fluente - de Althusser a Zizek – estava muito bem para impressionar colegas estudantes, os meus próprios alunos - de classe trabalhadora e intelectualmente curiosos - queriam saber o euque poderia dizer sobre o mundo tal como era e sobre como estava a mudar. E aí foi o método do Stuart, reunindo a sociologia, a ideologia crítica, a semiótica, a sociologia política e a necessária especulação que provou muitas vezes ser a única maneira de abordar a questão-chave que lhes importava a eles e a mim: a questão de quais as relações de poder que estavam a moldar as nossas vidas e de como as entender e como potencialmente as transformar. O Stuart sempre insistiu que a questão-chave para os estudos culturais era a questão do poder, e que a pergunta fundamental para os estudos culturais, quando se interroga um fenómeno qualquer, é 'o que tem isso a ver com tudo o resto.' São ditames elegantes, eficientes e económicos que servem bem a qualquer aspirante a analista político ou cultural.

A instância exemplar de uma tal análise 'conjuntural' era o livro que Hall escreveu com uma equipe de investigadores do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham: Policing the Crisis: Mugging, the State, and Law and Order (1978). Já disse isto, inúmeras vezes, mas é simplesmente impossível cair em exagero com o quanto este livro é impressionante, e o fato é que a sua importância só se tornou evidente vários anos após a publicação. Deixem-me explicar de forma tão simples quanto possível: este livro previu o Thatcherismo, num momento em que a maioria dos comentadores políticos pensava que os conservadores tinham cometido um erro terrível ao eleger uma líder de direita obscura, e em que os cortes no setor público feitos por Dennis Healey seriam uma medida de curto prazo em vez de uma mudança de paradigma. O livro começa por analisar um fenómeno simples: a disparidade mensurável entre um "pânico moral" pressionado pela imprensa  sobre a suposta epidemia de roubos de rua feitos por jovens negros a cidadãos brancos e a inexistência estatística de qualquer aumento desse crime. Começa por explicar esse fenómeno sintomático usando uma combinação de teoria dos meios de comunicação, da teoria social e das ferramentas analíticas oferecidas pelos grandes teóricos marxistas da ideologia: Althusser e Gramsci. No momento em que o livro estava terminado, tinha traçado o surgimento dessas tendências políticas e culturais que estavam em vias de se cristalizar na nova direita, mais ou menos descrevendo o populismo de direita, que seria precisamente a base para as duas primeiras vitórias eleitorais de Thatcher. Ele demonstra de forma incomparável a capacidade que tem uma combinação sintética, interdisciplinar de ciências sociais, teoria especulativa, análise textual e de comentários sobre história recente para gerar previsões mais ou menos verificáveis. É muito triste, embora politicamente não surpreendente (dada a arma perigosa que essas ferramentas intelectuais poderiam provar ser nas mãos de forças radicais) que as condições históricas que tornaram possível a produção da obra - colaborativa, interdisciplinar, especulativa – se não viessem a obter nas universidades britânicas durante muitos anos, como o próprio Stuart se lamentaria muitas vezes.

 

Isto estava longe de ser a primeira contribuição importante de Hall. Ele tinha traçado com a precisão dum perito a natureza em mutação da cultura britânica moderna e as implicações políticas dessas viragens nas páginas da New Left Review e noutros lugares desde o início dos anos 60. Os seus ensaios sobre temas teóricos na década de 1970 foram determinantes para transmitir as ideias de Gramsci, Althusser e Barthes para uma plateia de língua inglesa não restrita aos praticantes da emergente disciplina dos estudos culturais (que viria a ser o paradigma dominante nos estudos de média e haveria de transformar radicalmente o estudo da História, da Literatura e da Sociologia), mas que incluía secções chave do movimento mais amplo dos trabalhadores. Mais tarde, Hall iria desempenhar um papel semelhante no que diz respeito às teorias da raça, etnia e pós-colonialidade, inspiraria não só gerações de estudiosos críticos, mas também de artistas e cineastas.

Este aspeto do trabalho de Hall é muito apreciado hoje em dia, em parte porque é recente e em parte porque teve impacte sobre coortes mais tardias de fazedores de opinião e de comentaristas dentro de de um vasto leque de áreas culturais.

O que é talvez agora subestimado é a enorme influência política que Hall, parcialmente em colaboração com Martin Jacques, o editor de Marxism Today, exerceu sobre a esquerda britânica enquanto esta lutava para lidar com a derrota infligida pelo Thatcherismo na primeira metade da década de 1980. Os ensaios reunidos no volume que tem Hall como único autor, The Hard Road to Renewal [O difícil caminho para a renovação], continuam a ser modelos de análise conjuntural lúcida, teoricamente informada e de visão política. A defesa que Hall fez de uma ampla base política popular com a qual enfrentar a hegemonia Tatcherista e o ter abraçado uma modernização e democratização política que poderiam ir além do estatismo tradicional do século XX, foram uma enorme influência abrindo um leque de possibilidades, à medida que os anos 80 chegavam ao fim. Para desespero de Stuart, foi o neoliberalismo Blairista que realmente aproveitou a oportunidade para redefinir o território político do 'centro-esquerda'. Mas o que nunca se deve esquecer é que foi a versão do Stuart daquilo com que um socialismo 'New Times' se pode parecer que Blair e seus colegas tiveram de liquidar e neutralizar no início dos 90s para que essa vitória fosse possível.

No meu livro Anticapitalism and Culture de 2008, sugeri que o sucesso do New Labour marcou a derrota final da Nova Esquerda de Hall no movimento trabalhista britânico. Agora entendo que isso estava errado. As medidas para democratizar os serviços públicos, a rejeição explícita do gestionarismo burocrático e da mercadorização neoliberal, anunciado por Ed Miliband hoje mesmo, sugerem que a visão de Hall de um socialismo democrático (que ele compartilhou com muitos da Nova Esquerda, incluindo Raymond Williams, aquele outro grande progenitor dos estudos culturais) pode não ter sido de forma alguma derrotada para sempre pelo Blairismo. Por muito cauteloso que esse anúncio possa ser, pode ainda marcar uma mudança decisiva na direção em que Stuart fez muito para nos ajudar a mover.

A dívida contudo que tantos de nós temos para com o Stuart é não apenas política ou coletiva. Para alguém como eu, é impossível evitar a conclusão de que sem o apoio, intervenção e inspiração do Stuart e seus muitos grupos de estudantes, simplesmente não haveria de todo carreiras, casas institucionais ou oportunidades públicas para pessoas como nós. Em que se teria tornado este adolescente descontente, irritado, consternado, desiludido com as falas de merda que saturavam a cultura pública, inadequado para a vida numa instituição académica tradicional, se o Stuart e outros não tivessem criado um espaço institucional que nos pudesse nutrir, dar uma casa, permitir crescer e encontrar um lugar no mundo? Tenho medo de pensar, mas às vezes acho que não teria chegado à meia-idade.

O exemplo do Stuart permanece hoje bastante difícil de seguir. Dificilmente um autor a solo, por natureza um grande colaborador, o individualismo competitivo a que os jovens aspirantes a académicos são hoje forçados era um anátema para ele. Mas como sempre foi o primeiro a reconhecer, ele era em parte o beneficiário, bem como um dos arquitetos, da era social-democrata dourada da universidade britânica. Ele lamentou que os 'estudos culturais' como são ensinados e praticados em instituições académicas hoje fossem o mais das vezes reduzidos à teoria cultural, com muito pouco em termos de análise conjuntural a acontecer seja onde for; no entanto, ele reconheceu que a individualização e a instrumentalização da Academia cada vez empurraram mais os estudiosos para projetos pessoais com ambições grandiosas, abstratas (os meus próprios não seriam nenhuma exceção). Mas vale a pena refletir que um dos lugares onde ele viu essa forma de trabalho intelectual a que ele dava tanto valor continuar, foi de facto aqui, nos Comuns digitais de openDemocracy.

O Stuart não é um exemplo que possa simplesmente ser copiado, como nenhuma vida o pode. Mas o seu trabalho continua; diretamente, através dos esforços de seus colegas no jornal Soundings (ver aqui, por exemplo) e indiretamente através da atividade das incontáveis vidas, carreira, ideias, iniciativas, criações, deslocações e colaborações que inspirou e tornou possíveis. Não há melhor tributo possível do que fazermos o que pudermos para trazer à fruição as muitas possibilidades que ele discerniu na cultura e na política da nossa época, para as quais ele abriu os olhos de tantos de nós.

Tradução  de Paula Sequeiros para esquerda.net

Sobre o autor

Jeremy Gilbert é professor de Teoria Cultural e Política na Universidade de East London. O seu livro mais recente é o Common Ground. Veja http://www.jeremygilbert.org para mais informações, ou siga-o @jemgilbert

Artigo publicado no portal Open Democracy

Termos relacionados Internacional
(...)