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Um referendo que pode mudar a Europa. Algumas reflexões desde Atenas

O referendo de domingo na Grécia pode converter-se num episódio que mude a Europa. Uma chamada de atenção para o projecto europeu se este não quiser perder a sua legitimidade nos países que mais sofreram com a crise. Artigo de Alberto Sicilia, do Principia Marsupia, desde Atenas.

“Trouxe a minha filha porque quero que ela seja testemunha da História”. A Praça Syntagma converteu-se numa festa para celebrar a vitória do Não no referendo. Yorgos levava sobre os seus ombros a pequena Xenia”.

Algumas reflexões desde Atenas:

1) Muitos meios de comunicação venderam a vitória do Não como um “Não à Europa”. É totalmente falso. A imensa maioria dos que votaram no referendo [tanto pelo Sim como pelo Não] quer que o seu país continue na União Europeia.

2) A crise em Espanha foi terrível, mas não tem comparação com o que aconteceu na Grécia. A situação da Grécia é comparável à Grande Depressão dos anos 20 nos EUA. Veja este gráfico:

3) Em Espanha a austeridade, que causou muitíssimo sofrimento, foi na ordem dos 6% do PIB. Na Grécia foi de 17% do PIB.

4) É mentira que os gregos “culpem a UE por tudo”. São muito críticos em relação ao período “pré-crise”. Sabem que se cometeram excessos. Sabem também que tiveram governos nefastos [certamente, assessorados em certas ocasiões por grandes bancos internacionais].

5) Mas as medidas impostas pela troika durante os últimos 5 anos tiveram um efeito terrível. Agora em Atenas há dezenas de clínicas nas quais trabalham gratuitamente médicos voluntários que atendem dezenas de milhares de gregos que perderam o seu direito à saúde pública. Muitos desses cortes foram impostos pela troika. Foi contra isso que os gregos votaram no domingo.

6) Pode gostar ou não do Syriza, mas a realidade é que ganhou umas eleições para tentar algo diferente do que tinham feito os governos anteriores. A perceção geral entre os gregos é a de que finalmente encontraram um governante que está disposto a bater-se por eles em Bruxelas.

7) As mensagens que chegaram desde a Europa durante a semana anterior ao referendo reforçaram a sensação que tinham os gregos de que a UE despreza a sua voz. “Se digamos o que dissermos, as nossas políticas são decididas por outros governos em Bruxelas, então, para que serve a democracia? Para que serve votar?”.

8) Perante isto, o “discurso soberanista” de Tsipras funcionou muito bem. De facto, funcionou tão bem que depois de desfazer o PASOK em janeiro, agora acabou com o líder de centro-direita [Samaras demitiu-se no domingo].

9) As vozes que chegaram à Grécia da social-democracia europeia [Renzi desde Itália, Hollande desde França, Gabriel desde a Alemanha] foram indistinguíveis das mensagens dos partidos conservadores. Creio que a social-democracia tem um problema.

10) Tsipras convocou um referendo. Merkel viu a jogada e renunciou a negociar até que este se celebrasse. Em Berlim sabiam que, se Tsipras perdesse o referendo o seu governo estava acabado. Tsipras ganhou esta ronda. Agora o jogo passa de novo para Berlim. Estará Merkel disposta a passar à História como a chanceler que acabou com o euro?

11) Se a UE quiser, poderá asfixiar financeiramente a Grécia até expulsá-la efetivamente do euro. Mas isso faria com que o projecto comum europeu perdesse [ainda mais] a legitimidade. Muito especialmente entre as gerações mais jovens dos países que estão a sofrer a crise.

No domingo os gregos viveram um dia histórico, mas temo que a Europa não compreenda o seu significado.


Artigo publicado em http://www.principiamarsupia.com/2015/07/06/un-referendum-que-puede-camb...

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