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“Um país tem de saber olhar para a sua História”

Em entrevista ao esquerda.net, o crítico literário e autor do livro “Estranha Guerra de uso Comum”, Paulo Faria, afirma que a guerra colonial não deve ser apagada da nossa memória coletiva.
“A guerra situa-se tão fora da normalidade que temos dificuldades em entender o comportamento daqueles que são obrigados a conviver com a violência extrema e com a morte”
“A guerra situa-se tão fora da normalidade que temos dificuldades em entender o comportamento daqueles que são obrigados a conviver com a violência extrema e com a morte”

Quais as razões que o levaram a escrever este livro?

Poucos meses após a morte do meu pai, em abril de 2013, comecei a falar com camaradas que estiveram com ele na guerra colonial, em Moçambique, porque, em certa medida, tomei consciência do pouco que sabemos dos outros, e a morte dele despertou em mim o desejo de querer saber mais.

Mas o seu pai era uma pessoa que fazia parte do seu círculo íntimo.

Esse desconhecimento, por paradoxal que pareça, é tanto maior quanto mais próximas nos são as pessoas.

Foi doloroso ter ido em busca do conhecimento do seu pai após a sua morte?

Foi essa incomodidade que me impeliu a ir atrás de um tempo que se perdeu, com o intuito de remediar o erro de nunca ter dado passos para conhecer melhor a realidade que ele viveu durante a sua estada em África.

O livro tem uma natureza intimista?

A escrita deste romance partiu de uma necessidade pessoal, mas a narrativa acabou por abranger as vivências de vários homens que estiveram na guerra. Por isso, na minha opinião, não deve ser catalogado apenas dessa forma. Sendo certo, porém, que a boa literatura, a literatura que vale a pena ser escrita, é para mim aquela em que o escritor expia as suas culpas.

Que culpas é que quis expiar?

Fundamentalmente, prendem-se com o facto de não ter falado com o meu pai sobre esse período.

E há razões para não o ter feito?

Ao longo dos anos não tive coragem para o fazer. Conhecer o outro, seja ele quem for, implica sempre um esforço, que nem sempre estamos dispostos a encetar. Costumo dizer que descobrir outra pessoa é como entrar num floresta virgem, com todos os perigos, desafios e promessas que isso comporta.

Mas estamos a falar do seu pai.

É óbvio que eu conhecia o meu pai, mas admito que não tive coragem, tempo ou até talvez disposição para me confrontar... para o confrontar com o universo da guerra, que é um lugar repleto de demónios, de medos, de questões em aberto. É um terreno muito difícil, que eu talvez tenha tido receio de explorar.

Mas ele falava da guerra?

Apenas de forma pontual.

Ficou então muito por dizer?

Ficou, sem dúvida. O que não foi, longe disso, um caso um caso isolado, porque a maior parte dos ex-combatentes da guerra colonial com quem falei remeteu-se ao silêncio depois de voltar de África. Falam das suas experiências quando se encontram uns com os outros, mas falam ou falaram pouco do assunto com os pais, com as mulheres ou com os filhos.

É difícil falar sobre a guerra com quem não a viveu?

Não tenho dúvidas que é, porque a guerra situa-se tão fora da normalidade do nosso quotidiano, das nossas experiências, que temos dificuldades em entender o comportamento daqueles que são obrigados a conviver com a violência extrema e com a morte. Por outro lado, há nos próprios combatentes, sinto-o, uma certa relutância em falar. Há certas experiências cuja vivência é por natureza quase intransmissível. Transmiti-las aos outros é, em certa medida, degradar as memórias que delas conservamos, como um fresco conservado numas ruínas subterrâneas que se degrada quando os arqueólogos ali entram.

Após o fim da guerra, o Estado devia ter ajudado estes homens?

O Estado português não apoiou estes homens como devia, isso para mim é evidente. Nem antes nem depois do 25 de Abril. A maior parte dos jovens que estiveram na guerra colonial foram obrigados a partir, tinham pouca ou nenhuma consciência política e por isso não sabiam sequer ao que iam quando embarcavam. Pessoalmente, considero que a guerra colonial foi injusta, mas não me sinto no direito de adotar em relação a estes homens uma postura de superioridade moral. Recusei sempre essa armadilha.

Passados tantos anos, ainda é possível reparar essa falha?

A geração que fez a guerra colonial está naturalmente envelhecida e a morrer. Mas penso que ainda vamos a tempo de não deixar diluir a memória de um dos períodos mais difíceis da História de Portugal. Uma guerra não se pode apagar da memória coletiva de um país, porque é uma marca indelével que deve continuar a ser lembrada e estudada.

Uma guerra não se pode apagar da memória coletiva de um país, porque é uma marca indelével que deve continuar a ser lembrada e estudada

 

Mesmo junto das gerações mais novas?

É essencial que aqueles que não se confrontaram com este período tenham consciência das provações que eram impostas aos jovens daquela época. Há no ser humano uma predisposição para dizer «sim», para não contrariar a maioria. Quando vemos o espetáculo degradante das praxes académicas a desfilar pelas ruas, isto salta à vista. Mas os momentos mais exaltantes da História do homem são aqueles em que alguém disse «não», em que alguém foi ao arrepio da corrente. Dizer «não» é uma coisa que se aprende, principalmente conhecendo exemplos de outros que em tempos disseram «não».

Mais uma vez, a questão da necessidade da preservação da memória.

A guerra colonial foi o conflito mais significativo que Portugal travou no século XX. Tenho para mim que um país que não consegue olhar para a sua História é um país perdido.

E foi por essa a razão que escreveu este livro?

Em parte, sim. Eu sou filho da geração cuja vida foi condicionada pela guerra. Não me lembro da partida do meu pai para o Ultramar nem da sua chegada, mas sempre tive consciência de que a guerra passara a ser, para ele, um ponto de viragem na sua vida. Claro que, em termos puramente físicos, ele não sofreu sequelas. Não foi ferido, não trouxe doenças crónicas (como sucedeu a vários homens com quem falei). E não morreu, é claro. Mas o homem que regressou da guerra era um homem mudado.

Não teve receio de escrever sobre um tema de que praticamente já não se fala?

Nem pensei nisso, até porque continuará a haver sempre novos ângulos de abordagem. O impulso da escrita é sempre individual e íntimo, não se compadece com condicionalismos externos. Há ainda muito por dizer acerca da guerra colonial e acerca da nossa memória coletiva, o que pode até contribuir para abrir caminho a um relacionamento mais saudável entre Portugal e os países africanos. Neste momento, as nossas relações assentam quase exclusivamente numa lógica de empresarial, sem ter em conta a vertente histórica e cultural.

Como é que caracteriza o colonialismo?

Toda a colonização assenta na violência. Além de se ter prolongado demasiado no tempo, o fenómeno colonial português padeceu de um defeito terrível: a ideia de que não era tão violento como outros. Ou seja, os portugueses convenceram-se (embora isto possa soar como uma generalização abusiva, acho que não é descabido) de que eram colonizadores diferentes dos belgas, dos ingleses, dos franceses. Enquanto não nos libertarmos desta ideia sinistra, não saberemos (nem nós nem os angolanos, os moçambicanos, etc.) assumir as nossas responsabilidades e avançar para modos de relacionamento mais profícuos com as ex-colónias. Mas a premissa terá de ser esta: toda a colonização é uma história de violência (para parafrasear o título do filme do Cronenberg). Assim como, no meu entender, toda a história familiar é uma história de colonização (e de violência, portanto).

Ainda há complexos?

Enquanto toda a herança histórica não for assumida de uma forma saudável, subsistirão complexos de parte a parte.

"Sou filho da geração cuja vida foi condicionada pela guerra". Foto de Peter Josyph

Entrevista de Pedro Ferreira

 

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